19 de agosto de 2016 | N° 18612
DAVID COIMBRA
Não confie no dia de amanhã
Em 1999, nós fomos à Bahia. Nós: eu, o Serginho Villar e o Leonardo Oliveira. Você já foi à Bahia? Não? Então vá. É uma bela experiência.
O baiano tem fama de preguiçoso. Injustiça. Não é que ele seja preguiçoso; ele é manemolente. E não malemolente, mas manemolente, de “Mané mole”.
Essa manemolência baiana é sólida sabedoria. É saber viver a vida, é usufruir cada fatia pequena do dia. Horácio já dizia, 21 séculos atrás: “Carpe diem quam minimum credula postero”. Aproveite o dia de hoje e desconfie do de amanhã. É o que faz o baiano.
O símbolo maior da Bahia é Dorival Caymmi. Conta Caetano que um dia foi visitar Caymmi e o encontrou esfuziante.
– O que foi? – perguntou, intrigado.
E Caymmi, orgulhoso, relatou:
– Eu estava com calor. Aí veja o que fiz: coloquei o ventilador em frente à poltrona...
Não é por acaso que Caymmi é gênio da poesia minimalista. Só um baiano poderia escrever algo tão lindo, significativo e conciso quanto:
“O mar...
Quando quebra na praia...
É bonito...
É bonito...”
Só de pensar neste verso, posso ver e ouvir o mar rumorejando, indo e vindo sem parar, por toda a eternidade.
Esse ano em que fomos à Bahia, 1999, foi um ano decisivo para a história humana. Só quem estava vivo então podia dizer, como dizíamos:
– Que fim de século!
Adorava repetir essa frase.
Era para fazer graça, mas acabou sendo algo muito sério. As pessoas temiam que o mundo acabasse no ano 2000, e acabou mesmo. Aquele mundo não existe mais. Já escrevi sobre, não vou aborrecer o leitor com recorrências, apenas lembro que, entre os terrores de 1999, estava o bug do milênio – todos os computadores do planeta iriam “bugar”, porque não entenderiam a mudança dos anos 1900 para os 2000, e ficaríamos sem coisas essenciais, como os jogos de xadrez online.
Não aconteceu o tal bug, mas eu, o Serginho e o Leo alugamos um buggy em Porto Seguro e passamos a chamá-lo de buggy do milênio. Estávamos mesmo querendo fazer graça.
Nossa temporada na Bahia foi maravilhosa exatamente porque entramos no clima baiano. Num dia de chuva, decidimos tirar a poeira da garganta em um bar. Bebemos algumas garrafas de cerveja dessas de 600ml, até que o garçom veio e avisou:
– Agora só tem “di menor”...
Levou algum tempo até entendermos que ele se referia à long neck. Outra sabedoria baiana. Afinal, por que dizer long neck? Long neck é “pescoço longo”, não tem nenhuma lógica. Prefiro “di menor.” Pedimos algumas di menor e ficamos no bar toda a tarde, a filosofar.
Vivemos a vida baiana, naqueles últimos dias do mundo que se extinguiu, dias amenos e vagarosos como a brisa no fim de tarde de Trancoso, dias que foram como todos os dias teriam de ser.
Lembro com doçura daquele naco de tempo e, desde então, é também com doçura que penso nos baianos. Vejo-os agora em ação, na Olimpíada carioca, e torço por eles. Assisti a todas as lutas de Robson Conceição, medalha de ouro no boxe. Pode um ser humano esmurrar outro com doçura? Pois foi assim que Robson liquidou seus adversários. Amassou-os como se os amaciasse, socou-os como se os acarinhasse. Não era nada pessoal, era só algo que ele tinha de fazer, como Caymmi assentando o ventilador na direção da poltrona. Robson batia neles, depois os abraçava. Elogiava-os nas entrevistas. Quase agradecia.
E Isaquias, multimedalhista da canoagem, Isaquias é de uma baianice enternecedora. É forte, que ele rema, mas também é leve, como o baiano há de ser. Usa um cabelo alisado que parece o do Moe, dos Três Patetas, e é vaidoso como um poodle. O fotógrafo Diego Vara queria retratá-lo e pediu que tirasse o boné. Isaquias recusou-se:
– Meu cabelo está muito feio.
Posou para a foto com o boné virado.
Ontem, Isaquias largou mal e achou que não ganharia sua segunda medalha. E aí abespinhou-se, como diria Jorge Amado. Na hora, pensei em Caetano, que pode se abespinhar até com o mau uso da crase, e disse cá comigo: também é do baiano se abespinhar. Mas era um engano, Isaquias ganhou a medalha e, por fim, sorriu. Melhor. Baianos têm de levar a vida a sorrir. “Sorria, você está na Bahia” é a rima que há por lá. Uma rima certa, como eram as de Caymmi. Uma lição de vida. A vida tem de ser como é a vida na Bahia: com espírito olímpico, com sorrisos mesmo na derrota. Sorvendo o dia de hoje. Porque não dá para confiar no de amanhã.
Nenhum comentário:
Postar um comentário