27 de agosto de 2016 | N° 18619
ANTONIO PRATA
A DÉCIMA VEZ QUE A GENTE ASSISTE
“Vamos assistir o quê?”, ela pergunta, se aboletando no sofá. É sexta à noite, as crianças estão na casa da avó, não temos nenhum compromisso social, nenhuma pendência profissional, chove lá fora e aqui, caro Lobão, não faz tanto frio, pois estamos debaixo de um cobertor; à minha frente uma TV gigante, na minha mão um controle pequenininho e a poucos cliques, via Apple TV ou Net- flix, praticamente todos os filmes ou programas televisivos já produzidos desde a invenção do cinematógrafo. Parece a abertura de uma noite perfeita. Parece.
“Um Woody Allen?”, proponho. “De novo? Vamos ver alguma coisa diferente. Documentário?” Colocamos “Documentário” na Apple TV e vamos escrutinando as capinhas. Muita coisa parece boa, algumas parecem ótimas, mas por que ficar com o ótimo se podemos chegar ao excelente?
Depois de uns 20 minutos, conseguimos fechar em três docs: um sobre as prévias americanas, um sobre maus- tratos aos bichos no Sea World, um sobre os Rolling Stones. Estamos quase tirando um cara ou coroa entre as orcas e o Keith Richards, quando... “E série, hein? Faz tempo que a gente não tem uma série pra chamar de nossa. Lembra dos tempos de Mad men, Breaking bad, Sopranos? Vamos ver se a gente acha alguma coisa?” Ela assente, receosa. Coloco os três documentários na “Lista de desejos” e pulamos pra “Séries”.
“Séries” é sempre um problema. Nunca sabemos se devemos preencher algumas lacunas da nossa formação e assistir a The wire ou The west wing ou se devemos tentar acompanhar algum dos lançamentos mais recentes: Stranger things? Horace and Pete? Ficamos clicando nas capinhas, lendo sinopses e mandando coisas pra “Lista de desejos”. O tempo passa, “ele foge: irreversivelmente o tempo foge”, escreveu Virgílio, já é quase meia-noite e a lembrança do poeta latino me sugere que, nas águas turbulentas das crises, é sempre prudente atracar no porto seguro dos “Clássicos”.
“Billy Wilder?” “A gente já viu todos.” “Godard?” “Pelo amor de Deus, Antonio, a ideia é se divertir!” Truffaut bate na trave. Por uns momentos chegamos a comemorar a vitória do Bergman, mas o peso daqueles gigantes vai, furtivamente, criando uma ânsia por leveza. “Comédia!”, eu sugiro. “Jerry Lewis?! Eu nunca vi Jerry Lewis depois de adulto, dizem que é muito bom.” “Ah, não! A gente tem todos os filmes do mundo e vai escolher justo um que passa na Sessão da Tarde?!” “Woody Allen, então?” “De novo???”
Às três da manhã, já não há mais método na loucura. Vamos de um documentário sobre batatas fritas pra Oito e meio, de Goonies pra Luzes da ribalta, d’O dragão da maldade contra o santo guerreiro pra Caverna do dragão. Às cinco e cinquenta e nove, a última gota de esperança é finalmente evaporada pelo primeiro raio de sol. Desligamos a TV, viramos pra janela. O céu fica roxo, depois laranja, depois amarelo. “E aí, que que cê achou?”, pergunto.
“A fotografia é linda, mas o roteiro é péssimo.” “Previsível. Parecia que o sol ia nascer, daí começou a nascer e no fim, nasceu mesmo.” “É. Sem contar que é a 10ª vez que a gente assiste.” Dormimos no sofá. Acordo poucas horas depois com o mais novgolpeando minha cabeça com uma Peppa inflável e gritando “Babai!”, “Babai!”, “Babai!”.
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