sábado, 1 de novembro de 2014


02 de novembro de 2014 | N° 17971
CÓDIGO DAVID | David Coimbra

A bruxa do bairro Navegantes

Você tinha de ver o que é o Halloween por aqui. Os americanos realmente adoram a coisa. Enfeitam as casas, penduram caveiras nas janelas, decoram os jardins com morcegos de plástico. Há teias de aranha falsas esticadas nos galhos das árvores e, numa casa aqui perto da minha, os moradores deitaram um manequim de bruços na grama – parece um cadáver. Em todas as varandas há aquelas abóboras, nunca vi tanta abóbora, por Deus.

Tem umas aboborinhas bem pequenas, do tamanho de uma caixa de fósforo Paraná, e umas abóboras enormes, muito maiores do que a maior melancia que você já viu. Nem sabia que existia abóbora tão grande. E eles vão trabalhar com roupa de Drácula e fecham algumas ruas da cidade só para a comemoração e as crianças se fantasiam de monstros e saem por aí pedindo doces. É uma grande festa, muito alegre e, para minha surpresa, temperada com certa ingenuidade que não existe mais no Brasil.

O Halloween é uma comemoração irlandesa, de origem celta, mas não entendo por que é tão popular nos Estados Unidos. Acho que tem a ver com Salem. Qualquer dia desses vou contar para você como é Salem. Fica duas horas ao norte de Boston. É uma das cidades fundadoras dos Estados Unidos, aonde chegaram os chamados “pilgrims”, os pioneiros que construíram a Nova Inglaterra.

Salem é chamada de “a cidade das bruxas”. Não por causa das mulheres de hoje, felizmente. Por causa das d’antanho, como escreveriam cronistas d’antanho. No século 17, uma escrava africana desenvolveu o hábito de levar algumas meninas para os bosques da região a fim de contar-lhes histórias de espíritos e vodus e tal. Um dia, decidiu instruí-las nos ritos de sua religião. Elas dançavam em meio às árvores e às sombras da floresta. Aquilo tudo causou profunda impressão nas meninas, que passaram a ter pesadelos à noite. O pai de uma delas chamou um velho médico local para examiná-la e o diagnóstico foi assustador: ela estava enfeitiçada!

Era um tempo de crendices. As meninas acreditaram ser vítimas de bruxaria, tinham acessos de transe coletivo, atiravam-se ao chão, abaladas por convulsões. Os pais ficaram horrorizados. O diabo estava entre eles! Logo, a cidade entrou em pânico, e o governo puritano de Massachusetts resolveu intervir. Mandou um severo magistrado para a cidade, um Joaquim Barbosa, na intenção de averiguar os fatos e punir prováveis feiticeiras. No tribunal, as meninas, tomadas de êxtase, apontavam aleatoriamente para os incautos que saíram de casa para assistir ao julgamento, acusando-os de bruxaria.

O lugarejo virou uma espécie de Brasil eleitoral, em que uns acusam os outros de petralhas ou de coxinhas. Mais de 300 pessoas foram processadas. Vinte foram executadas. Um condenado sofreu uma pena terrível, só merecida por quem rouba bilhões da Petrobras: prenderam-no ao solo e puseram uma tábua sobre seu peito. Em seguida, empilharam pedras em cima da tábua, uma após outra, até que ele morresse sob a pressão. A tortura durou três dias.

Há um bom filme sobre esse caso com a coisinha Winona Ryder e o ótimo Daniel Day-Lewis.

Esse negócio de histórias de terror deixa a pessoa impressionada mesmo. O meu avô e a minha avó gostavam de fazer isso. Eles moravam ali na Dona Margarida, no Navegantes, num tempo em que só havia casas e pequeno comércio na rua.

A sapataria do meu avô funcionava na frente da casa. Do outro lado da rua, havia o açougue do seu Milton, gremista fanático que, quando o Grêmio perdia, ficava o dia inteiro trancado no quarto, sem falar com ninguém. Minha avó ia todos os dias ao açougue e voltava com uma peça de carne em cima do prato.

Ao lado da casa do seu Milton estava plantado um sobrado de madeira no qual moravam umas pessoas misteriosas, muito caladas, parece que eram estrangeiras, poloneses ou russos, sei lá. O sobrado ficava com todas as luzes sempre apagadas, menos uma, de uma janela lá de cima, do segundo andar, onde às vezes aparecia uma cabeça loira de mulher, detrás do vidro fechado. 

Essa mulher jamais havia sido vista fora da casa, mas, não raro, à noite, ela gritava. Seus gritos eram horríveis e nos deixavam com os ossos congelados de pavor. Meus avós, minha mãe, minha madrinha, mais meia dúzia de vizinhos, eles todos levavam suas cadeiras para a calçada e passavam horas narrando histórias de fantasmas e, de repente, alguém olhava para a janela da mulher que gritava e começava a contar:

– Um tio meu, tio distante que mora em Hamburgo Velho, veio me visitar esses dias e me contou que conhece essa família. Eles não são da Polônia. São da Transilvânia. Vocês sabem: a terra dos vampiros...

Eu arregalava os olhos. Todos os meus nervos se retesavam em expectativa. Qual seria o segredo da loira que gritava? Então, quando o homem ia contar o que sabia, acontecia: aquele urro de dor ecoava pela rua:

– Aaaaaaaaaaaaah...

Como se ela soubesse que estavam falando dela.


Nunca descobri o que aconteceu com a loira que gritava, mas vez em quando recordo daqueles contos de terror. Ontem mesmo, num dos antigos sobrados da periferia de Boston, uma construção de bem uns 150 anos de idade, olhei para cima, para a única janela iluminada da casa e, nossa!, lá estava uma cabeça loira de mulher, olhando para baixo, como se me encarasse. Fui embora rapidinho. Feliz Dia das Bruxas!

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