O arquiteto da ONG Make it Right, dedicada a projetos ambientais, diz que as cidades têm de consumir água de chuva e não depender de represas
MARCELO MOURA
20/11/2014 07h00 - Atualizado em 20/11/2014 11h04
ÁGUA RARA Tim Duggan, arquiteto da ONG Make it Right. Ele diz que a falta d’água veio para ficar (Foto: )
ÁGUA RARA
Tim Duggan, arquiteto da ONG Make it Right. Ele diz que a falta d’água veio para ficar (Foto: reprodução)
São Paulo enfrentou transtornos contraditórios no início do mês. Cidades como Itu sofreram, ao mesmo tempo, alagamento por causa das chuvas fortes e seca nas torneiras devido ao baixo nível nas represas que abastecem o Estado. No modelo atual das cidades, drenamos para longe a água da chuva, que chega a todas as casas, grátis e com razoável qualidade. E trazemos de longe, a alto custo, água de reservatórios, filtrada e bombeada por dezenas de quilômetros.
“O consumo de água nas grandes cidades segue um padrão de 100 anos atrás, insustentável nas próximas décadas”, afirma Tim Duggan, arquiteto da ONG Make it Right. Fundada pelo ator Brad Pitt, ela desenvolve técnicas e ergue estruturas mais amigas do meio ambiente. Esse conhecimento já foi usado na reconstrução de Nova Orleans, devastada em 2005 pelos furacões Rita e Katrina, que deixaram 80% da cidade debaixo d’água.
Nove anos após a tragédia, Nova Orleans tornou-se exemplo de área urbana sustentável. Além de erguer casas eficientes, a Make it Right reconstruiu ruas e calçadas com concreto poroso, capaz de absorver chuva. Além de evitar enchentes, o piso filtra a água, para aproveitamento em jardins e reservatórios. No Brasil, a onda de construção de edifícios dos últimos anos foi, em grande parte, desperdiçada – poucos deles captam e reúsam água. Duggan veio ao Brasil a convite do ciclo de palestras Arq.Futuro e contou como incentivar a construção de edifícios e casas mais modernos.
ÉPOCA – São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, os três Estados mais ricos e desenvolvidos do Brasil, enfrentam risco de ficar sem água. A crise de abastecimento é um problema local?
Tim Duggan – A falta d’água nos grandes centros urbanos é um problema mundial. Veio para ficar. Em Phoenix, no Arizona, ou em Los Angeles, Califórnia, enfrentamos situação parecida. As duas cidades têm mais habitantes do que recursos hídricos. Bombeamos água de toda a região sudoeste dos Estados Unidos para essas áreas. Cidades que excederam a capacidade do ecossistema representam um problema. São insustentáveis.
ÉPOCA – O que há de errado no sistema de abastecimento d’água dos grandes centros urbanos?
Duggan – As cidades exploram recursos hídricos da mesma maneira há mais de 100 anos. Nesse período, a população urbana foi multiplicada por 20, de 160 milhões de habitantes para mais de 3 bilhões. Os centros urbanos são meros consumidores de água, com participação mínima na captação. A água das chuvas escorre pelo ralo, descartada como se fosse lixo. Água é como petróleo: um recurso natural hoje valioso, mas por muito tempo desprezado. Se não mudarmos nossos hábitos e a infraestrutura das cidades, veremos conflitos globais pela posse da água, não mais por petróleo, no próximo século.
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ÉPOCA – O que os governantes podem fazer para afastar o risco de falta d’água?
Duggan – As cidades precisam capturar a água para o consumo de suas comunidades. Em vez de investir em sistemas caros de captação, tratamento e bombeamento até as torneiras, nossa ONG encara cada gota d’água como um recurso, e a capturamos quando ela cai. Para isso, temos “jardins pluviais”, biorreservatórios e cisternas. Usamos cada gota d’água de acordo com as possibilidades previstas em cada projeto. Precisamos estudar como reaproveitar a mesma gota d’água várias vezes, como se faz hoje com a reciclagem de plásticos.
ÉPOCA – Formas de captar e reaproveitar água tornam as cidades e seus edifícios necessariamente mais caros?
Duggan – A resposta a essa pergunta é relativa. Se você não começar a pensar proativamente, em captar e reaproveitar água nas cidades, terá custos mais altos para bombear e tratar a água, cada vez mais poluída, de fontes mais distantes. Temos de buscar métricas para avaliar os custos de curto e de longo prazo. Só assim você terá uma métrica adequada. Olhar apenas para o investimento inicial é uma forma imprecisa de avaliar uma iniciativa sustentável. Temos de ponderar o custo do investimento e os impactos sociais, ambientais e econômicos.
ÉPOCA – Grande parte da população sabe da escassez de água. Mesmo assim, nem sempre se sente responsável pela solução. Como mobilizar os consumidores?
Duggan – A falta de engajamento é, infelizmente, um problema em muitos lugares no mundo. É importante começar uma campanha agressiva de conscientização popular. Os líderes políticos têm papel fundamental para informar suas comunidades sobre a gravidade do problema e defender investimentos em reformas.
ÉPOCA – A maioria dos edifícios no Brasil tem apenas um hidrômetro. Como pedir consumo responsável a moradores que nem sabem quanto gastam?
Duggan – Isso é um problema. Esforços individuais passam despercebidos numa conta unificada. Poder acompanhar o consumo individual é o primeiro passo no esforço pelo consumo consciente. A escassez de água deixa de ser um problema difuso, sem dono, quando se torna possível enxergá-lo nas questões cotidianas.
ÉPOCA – Adotar medidores individuais demanda uma reforma dos apartamentos cuja despesa, para o morador, raramente é compensada pela economia trazida pela redução no consumo. O principal ganho é coletivo. Como o Estado poderia incentivar o investimento em casas mais eficientes?
Duggan – Vários governos investem em diferentes formas de estimular o desenvolvimento e a adoção de soluções para reduzir o consumo de água. Os Estados Unidos incentivam o setor imobiliário com redução de impostos e privilégios na concessão de licenças de construção. Estimulado, o mercado apresenta resultados concretos e já começa a andar por conta própria.
"Sem reúso, pagaremos para bombear água cada vez mais poluída, de mais longe"
ÉPOCA – Qual o papel de uma ONG, como a Make it Right, no desenvolvimento de casas de menor impacto ambiental?
Duggan – Os objetivos de nossa organização não são os mesmos de uma construtora comum. Nossa missão é aplicar os princípios do desenvolvimento sustentável e mudar as comunidades, em vez de auferir lucro. Procuramos erguer casas “verdes” e economicamente viáveis no longo prazo, mesmo que não no curto. As primeiras casas que construímos em Nova Orleans não foram baratas. Custou caro chegar a um produto barato. Com fins lucrativos, certas inovações são impossíveis. Tivemos de encontrar formas de baixar o custo a cada nova construção. Finalmente, hoje temos partes principais das casas padronizadas em kits, de forma a fazer habitações com desenho sofisticado, capazes de atingir altos níveis de sustentabilidade, sem estourar o orçamento. Desenvolvemos diferentes projetos em diferentes lugares da América, todos com o objetivo de custar menos e respeitar mais o meio ambiente.
ÉPOCA – A construção civil não pareceu evoluir, nas últimas décadas, no mesmo ritmo de setores da manufatura, como fábricas de componentes eletrônicos ou automóveis. Por quê?
Duggan – Não precisa ser assim. Cada edifício é único, mas seus princípios podem ser reproduzidas. Uma equipe pode adaptar técnicas padronizadas de construção à realidade local. A melhor forma de multiplicar inovação é formar uma equipe de designers, arquitetos, planejadores e engenheiros que entendem de projeto sustentável e sabem como aplicá-los ao terreno, qualquer que ele seja.
ÉPOCA – A transformação de Nova Orleans numa cidade verde foi facilitada pela tragédia do Furacão Katrina, que desabrigou cerca de 80% da população. A necessidade de modernizar as casas tornou-se indiscutível e urgente, uma vez que já estavam destruídas. O governo federal investiu na reconstrução. Gente inovadora e influente do mundo inteiro dedicou-se a ajudar. Sem a tragédia, a ONG Make it Right nem existiria. Como transformar cidades sem depender de uma circunstância tão extrema?
Duggan – Muitas comunidades enfrentam desastres econômicos, não apenas desastres naturais como o Furacão Katrina. Podem, da mesma forma, transformar a crise em oportunidade. Em Nova Orleans, concluímos que a mudança não viria no primeiro dia. Teríamos de formar uma equipe persistente em torno de uma grande ideia, capaz de resistir até haver massa crítica e mobilização. Começamos com um projeto pequeno, até que as comunidades se engajaram. Não apenas um setor da sociedade é dono desse movimento. Os moradores de Nova Orleans pressionaram as autoridades a apoiar uma política diferente.
ÉPOCA – Como é trabalhar com Brad Pitt?
Duggan – Ele é um líder feroz, que nos encorajou a inovar em cada passo do projeto. É maravilhoso fazer parte de uma equipe que realmente quer fazer o bem e mudar o mundo, em termos de urbanismo.
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