quinta-feira, 27 de novembro de 2014

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27 de novembro de 2014 | N° 17996
L. F. VERISSIMO

Definição

Dependendo de quem você é, a que tribo pertence e que valores tem, suas referências são diferentes das do vizinho. O Garrincha, por exemplo, quando quis contar que estivera em Paris com a Seleção, não recorreu à Torre Eiffel, ao Arco do Triunfo ou ao Sena para identificar o lugar, como você e eu faríamos.

Disse “Aquela cidade em que o seu Feola caiu na banheira” (como todas as histórias sobre a inocência do Garrincha, esta também deve ser apócrifa, mas, como ensinou o John Ford, na dúvida, publique-se a lenda). Há alguns anos, por razões nunca explicadas, latas de leite em pó cheias de maconha foram dar numa praia do Estado do Rio. Muitas latas, contendo maconha da melhor qualidade – e era só pegar e levar.

Houve quem agradecesse a Deus pelo milagre, pois a origem de tanta erva só podia ser divina. E, até hoje, o ano de 1987, em que muitas outras coisas importantes aconteceram (Gorbachev começou a abertura na União Soviética, houve o acidente com o césio radioativo em Goiânia, morreram Drummond e Golbery, o Brasil derrotou os Estados Unidos no basquete etc.), é lembrado em certos círculos apenas como o ano em que deu maconha na praia.

Fiquei pensando no que eu escolheria como sendo emblemático dos tempos atuais. Um fato, uma pessoa, uma curiosidade que resumisse tudo o que estamos passando. Escolher a frase símbolo destes dias seria fácil: é “às favas com os escrúpulos”, dita pela primeira vez na reunião do alto comando do golpe de 64 que instituiu o AI-5. Os escrúpulos mandados às favas, então, eram quaisquer considerações de direitos humanos e processos democráticos – ou seja, qualquer frescura que atrasasse a ditadura.

Com o passar do tempo, os escrúpulos mandados longe adquiriram outros significados – ética, moral, honra, vergonha na cara –, e sua falta trouxe os escândalos em série que nos assolam. Frases podem definir eras – já se disse que a frase símbolo do século 20, o século dos campos de extermínio e das bombas nucleares, poderia ser “Estávamos apenas cumprindo ordens” –, mas só frases não satisfazem nossa necessidade de uma definição perfeita, pela qual vamos nos lembrar destes tempos para sempre. E acho que a encontrei.


A notícia saiu nos jornais sem muito destaque: membros do batalhão de elite do Exército que formam os Dragões da Independência foram pegos assaltando um posto de gasolina. Claro que a corporação não tem nada a ver com o comportamento de três ou quatro delinquentes, que serão castigados, mas a posteridade não vai querer saber disso: o lembrado será que houve um tempo no Brasil em que a falta de escrúpulos era tanta, que membros da guarda cerimonial da Presidência da República estavam assaltando postos de gasolina. Gente: Dragões da Independência!

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