22
de novembro de 2014 | N° 17991O
PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno
Arma branca
É
ASSIM QUE FUNCIONA o processo: o surgimento de uma novidade torna necessário
rebatizar o termo antigo
Num
jantar, querem saber por que falamos em arma branca. Existiria arma preta? Na
hora eu não soube responder; agora, depois de várias visitas ao amansa, posso
dar meu palpite: é parte da evolução que a palavra arma sofreu. Até a Idade
Média, o vocábulo, além das armas propriamente ditas, incluía também a couraça,
o escudo, as perneiras, o capacete e tudo o mais; quando se lê em Homero que
Hefesto fez novas armas para Aquiles, imagine-se o pacote completo.
A
vulgarização do uso da pólvora, contudo, terminou colocando em desuso as
armaduras e os escudos, e a palavra arma passou a ser entendida de forma mais
restritiva, designando os artefatos que ferem ou matam a pessoa ou o animal
atingido.
A partir
do século 18, com o desenvolvimento da pistola, do arcabuz e do canhão, o
conceito arma ganhou duas subespécies, as armas de fogo, que usam a energia da
pólvora, e as armas brancas, geralmente dotadas de lâmina, que dependem da
força e do braço humano. Bem nessa época, o dicionário de Bluteau (é de 1720)
distingue as armas de fogo das armas brancas, assim chamadas “porque eram de
aço branqueado ou prateado” (é útil lembrar que branco vem do Germano blanck,
“reluzente, polido, branco”, o que combina perfeitamente com a aparência do
aço).
A
expressão arma branca, portanto, nada mais é do que um dos primeiros exemplos
de retronímia (ou retroformação, como querem alguns), processo hoje
comuníssimo, típico deste século vertiginoso em que vivemos. Leite era leite,
não importando de que mamífero viesse.
Usávamos
a mesma palavra tanto para falar nos banhos de leite de Cleópatra quanto nos
rios de leite e mel que nos aguardavam na Terra Prometida. A sociedade
industrial, no entanto, sempre generosa na hora de fornecer corda para o
consumidor se amarrar mais um pouquinho, passou a oferecer o leite desnatado –
e o vocábulo leite, sozinho, deixou de ser suficiente para designar aquilo que
o bezerro mama, tendo de receber o auxílio do adjetivo integral.
É o
mesmo caso de música ao vivo: antes de inventarem os sistemas de gravação e
reprodução de som, hoje tão banais, um restaurante que animasse o seu jantar
com uma orquestra ou um trio instrumental jamais cogitaria em mencionar “ao
vivo”, pois música era música, e ponto.
É
assim que funciona: o surgimento de uma novidade deflagra a necessidade de
rebatizar o termo antigo, genérico, acrescentando-lhe um especificador. Não
raro o elemento novo termina “roubando” o termo para si, ficando o elemento
antigo reduzido a uma simples subespécie.
Por
exemplo, se alguém contar aos netos que costumava cheirar uma fraldinha antes
de dormir, é bom que acrescente “de pano”, pois fralda, hoje, designa o que
inicialmente era chamado de fralda descartável – algo que, como diria a Emília
do Monteiro Lobato, é francamente “incheirável”. Era isso. Ah, aproveito para
convidar os amigos leitores a me acompanhar no grupo Sua Língua
(www.facebook.com/groups/sualingua), onde conversamos sobre tudo o que diz
respeito a nosso idioma.
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