sábado, 15 de novembro de 2014


16 de novembro de 2014 | N° 17985
CÓDIGO DAVID | David Coimbra

O velhinho

Engordei seis quilos desde que cheguei aos EUA. American way of life, sabe como é... Mas não sou de donuts polvilhados de açúcar, nem de hambúrgueres com maionese transbordante, nem de bacon frito. Tenho a impressão de que a grande responsável pelo meu engorde é uma sorveteria que fica perto da escola do meu filho. Lá são servidos sorvetes cremosos e caseiros, uma delícia. E lá tem umas poltronas macias para a gente ficar olhando a vida passar e, enquanto isso, rola um suave rock nacional. Como resistir?

Então, estava indo todos os dias a essa sorveteria, um atentado calórico. Foi lá que vi pela primeira vez uma figura folclórica aqui do bairro. É um velhinho bem velhinho, deve ter, sei lá, 90 anos ou mais. Ele se desloca pela cidade da mesma forma que o fazem todas as pessoas em idade provecta por aqui: em uma cadeira de rodas motorizada que parece tão boa de andar que tenho vontade de comprar uma para mim.

É algo curioso, pelo menos para um brasileiro tosco feito eu, desacostumado a ver pessoas idosas se movimentando com independência pelas ruas. Pois é isso mesmo que a cadeirinha dá aos velhos e deficientes: independência. Ela tem rodas de borracha e ganha razoável velocidade, como se fosse uma pessoa correndo. É manejada por uma espécie de manche, com uma mão só.

E, para permitir escorreita circulação às cadeirinhas, a prefeitura cuida com critério das calçadas. São feitas de grandes placas de concreto, lisas, com rampas em todas as esquinas. Quando a prefeitura vai reformar uma calçada, ainda que a obra dure só um ou dois dias, é construída uma rampa auxiliar, também de concreto, para permitir que os velhinhos e os deficientes possam ir a qualquer lugar sem contingências. À frente da obra é postado um policial, que fica atento para que os carros não atrapalhem a circulação dos pedestres, dos corredores (que são muitos) e das cadeiras.

Esse velhinho a quem me refiro demonstra exemplar habilidade na condução da sua cadeira. Anda em zigue-zague pelas calçadas em alta velocidade, os outros que se cuidem com ele. Está sempre zanzando por aí. O dia em que o vi pela primeira vez foi uma dessas tardes outonais da Nova Inglaterra, sol ameno, 12°C. Depois de buscar meu filho na escola, fomos nos repoltrear com densos sorvetes de baunilha e de café que explodiam em cerca de 2 mil calorias, cruz-credo. Já havíamos nos instalado nas poltronas quando o velhinho surgiu na calçada, pilotando sua cadeira. Tomou a maçaneta na mão e deu ré, abrindo a porta. Nisso, uma moça ia saindo e segurou a porta para ele. Que rosnou:

– Não precisa segurar para mim! Pode sair, que me viro sozinho.

Ela hesitou, e ele:

– Sai, sai!

Ela se foi, constrangida. Ele entrou, bufando.

Notei que, em volta da cadeira, penduradas em vários ganchos ou acomodadas em compartimentos, havia sete pequenas malas e pastas. Sete! A vida dele inteira deveria estar lá dentro.

Ele rodou pelo corredor da sorveteria. Uma senhora tinha puxado uma cadeira para fora da mesa, obstruindo-lhe a passagem. Ele reclamou:

– Quer tirar essa cadeira daí?

A senhora tirou, mais do que depressa, e pediu desculpas. O velhinho não respondeu. Deslizou até o balcão. Parou na frente da atendente. Jogou o braço para trás e, de algum desvão da cadeira, sacou um enorme copo de metal.

– Café quente e forte até o topo! – ordenou.

A atendente pegou o copo e obedeceu. Devolveu-o ao velhinho. Que latiu outra vez:

– Bolo de abóbora! Um pedaço grande!

A menina logo surgiu com uma fatia de bolo de abóbora num pires. O velhinho analisou-a e respirou fundo:

– É pequena!

Ela foi para trás do balcão e voltou com uma fatia três vezes mais larga. Ele tomou o pires, acomodou-o sobre um suporte e rodou até uma mesa. Alguém estava prestes a sentar-se, mas ele rugiu novamente:

– É minha!

O rapaz que ia se acomodar desistiu, pediu desculpas e foi procurar outro lugar menos inóspito.

Fiquei observando-o enquanto ele se ocupava em destruir o bolo com os dentes, que, suponho, eram postiços. Voava farelo para todo lado e ele sugava aquele café com alarde. Uma cena dantesca.

Olhei para a atendente, que, do lado de lá do balcão, também admirava a apresentação do velhinho. Nossos olhares se cruzaram. Ela sorriu, condescendente. Sorri de volta. Levantei-me para sair com meu filho e, no mesmo momento, o velhinho engatou a primeira lá naquela cadeira dele, pronto para também ganhar a rua. Estremeci. Decidi deixá-lo sair antes de nós. Fiquei de pé, segurando meu filho pela mão, esperando. Ele passou por mim, pegou a alça da porta e, antes de empurrá-la para fora, me encarou.

– Qual é o problema? – perguntou, acrescentando algo asperamente que não entendi, mas que devia ser algum adjetivo pouco elogioso na língua de Shakespeare.

Abri a boca, sem saber bem o que dizer. Não precisei falar. Ele não esperou pela resposta. Foi-se embora velozmente na sua cadeira, reclamando da vida.


São, de fato, independentes até demais esses velhinhos sobre rodas da América do Norte.

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