quarta-feira, 26 de novembro de 2014


26 de novembro de 2014 | N° 17995
PEDRO GONZAGA

CIDADES IMAGINÁRIAS

De dentro da Boca Maldita, vendo uns raros senhores que já não parecem capazes de vilipendiar ninguém, deixo-me estar em frente ao Café Avenida, pensando menos no que vejo e mais no que me dissera ontem o cronista Luís Henrique Pellanda: já não sai mais à rua aquele vampiro que antes raramente se avistava, o pai dos vampiros que se escondiam em cada esquina, em cada praça, no imo dos corações de tantos jovens curitibanos.

Muito do que imagino desta cidade vem de duas mãos cheias de contos perversos, humanos, cômicos, indomáveis, de Dalton Trevisan. Como leitor, me pergunto onde estarão os candidatos a Nelsinho, ou às variações infernais da “Ilíada doméstica” de Guerra Conjugal. Desapareceram. Diante de mim está a cidade, bonita, mas fria, impessoal porque só podemos amar aquilo que somos capazes de imaginar criativamente. Sem Cervantes, a Mancha é só um pedaço de terra, sem o calafrio do prédio em que viveu a pessoa que nos revelou o fervor da carne, subsiste ali apenas alvenaria e vidro e impostos a pagar.

Vim a Curitiba para o festival Litercultura, onde me cabia apresentar o livro Todas as Cartas de Amor, do português Paulo José Miranda. Foi também o reencontro com um amigo que me foi trazido pela poesia, em 2011, quando ele, perdido em Porto Alegre e sem documentos, descobriu e apresentou o meu A Última Temporada.

Na casa afastada em que vive hoje, entre peixes e passarinhos, depois de muitas garrafas traficadas do Alentejo, comemos uma iguaria lusa chamada salmonete, um peixe pequeno, de cor rosada, que só aparece na primavera. No além-mar, o preço é proibitivo. Aqui, chamado de trilha, ainda é barato (até que crônicas como esta o inflacionem). Depois de frito, acompanha-o arroz de tomate, outra especialidade da terrinha.


Cidades que criamos. Taquara será sempre minha avó desperta às seis da manhã, à mesa, com seu cigarro e seus óculos de lentes garrafais. Curitiba, depois de Dalton, uns salmonetes que sabem a camarão e a caranguejo, enquanto dois poetas lembram de Du Fu, Li Bai e Marina Tsvetáieva.

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