02 de novembro de 2014 |
N° 17971
ANTONIO PRATA
Ao pé do olvido
De uns tempos pra cá começaram a nascer uns pelos nas
minhas orelhas. São grossos e escuros. Alguns vêm lá de dentro do canal
auditivo, como cipós saindo de uma gruta em busca do sol. Outros brotam na
borda, nessa abinha que fica em cima do ouvido e que o Google acaba de me
informar chamar-se “trago” – nome curioso, aliás, uma vez que o “trago” nunca
me trouxe nada além desses pelos grossos e escuros.
Confesso que recebi a novidade pilosa
com animação. Estou com trinta e sete, já faz muitos anos, portanto, que
qualquer notícia capilar é necessariamente uma notícia ruim. O cabelo cai. As
entradas aumentam. Fios brancos, antes não mais frequentes do que albinos numa
multidão, são agora uma população importante na demografia da minha cabeça.
Alguns de seus representantes
mais intrépidos, inclusive, já podem ser encontrados tentando colonizar outras
regiões mais ao sul deste corpo que habito. Ao que parece, o objetivo dos alvos
aventureiros do norte é ir descendo, devagarinho – primeiro a cabeça, depois a
barba, depois o peito –, até fincarem suas bandeiras no ponto mais austral do
meu ser: o dedão do pé. “Não passarão!”, digo eu, com uma pinça na mão, fazendo
os colonizadores branquelos tremerem mais do que as tripulações de Amundsen,
Shackleton e Scott sob o inverno antártico.
Veja, o problema do cabelo e dos
pelos brancos nem é tanto estético, é mais o que eles representam: são um
teaserzinho da morte, um trailer anunciando um filme cujo fim sabemos qual é;
aniquilação total, em breve, num cinema dentro de você!
Semana passada fui fazer o exame
médico periódico na Globo, onde trabalho. A doutora, com aquele bom humor
característico de médico da firma, disse que eu precisava me cuidar: “Desde os
35 que a natureza te abandonou. Daqui pra frente o corpo só piora”. Fiquei com
raiva da mulher. Decidi trucar aquele pessimismo: “Na verdade, a natureza não
me abandonou, não. Aos 35 é que ela começou a brincar comigo. Afinal, tem algo
mais natural do que a decadência?”. A doutora tirou os olhos da minha ficha e
me encarou, surpresa: quem poderia ser mais baixo astral do que uma médica em
exame periódico da firma? Ora, um roteirista em exame periódico da firma.
Por essas e outras, recebi
animado os novos pelos nas orelhas. Foi como se, já beirando os quarenta, uma
parte de mim resolvesse declarar independência do resto do corpo e entrar na
puberdade. Do nada, a penugem clara engrossou e escureceu, como os pelinhos do
meu bigode e do púbis, lá se vão vinte e tantas primaveras (ou, deveria dizer,
outonos?).
O melhor é que essa adolescência
tardia acontece justo lá no hemisfério norte, onde os colonos caucasianos já
ameaçam a sobrevivência da castanha população autóctone.
Minha mulher, insensível à
batalha que está sendo travada entre Eros e Tânatos, com queratina e melanina,
a leste e oeste de minha consciência, insiste para que eu arranque os novos
pelos. Jamais! Os cabelos embranquecem ou caem, as costas doem e o colesterol
não vai lá muito bem; é verdade, doutora, dos trinta e cinco em diante vamos
nos curvando nessa lenta e inapelável reverência à “indesejada das gentes”, mas
nas minhas orelhas há viço, há vigor. Ao pé do olvido, elas adolescem.
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