23
de novembro de 2014 | N° 17992
CÓDIGO
DAVID | David Coimbra
A saga do
crepúsculo
Está
anoitecendo às quatro da tarde aqui, na Nova Inglaterra. Quatro da tarde, e o
mundo mergulha na penumbra. Mais meia hora, e é noite cerrada.
Sabe
o que é isso, o dia acabar quando as pessoas ainda estão se lambuzando com
protetor solar fator 60 no Brasil? Em novembro! Outono, não inverno!
Faz
toda a diferença na vida de um homem.
Dá
para entender por que os americanos jantam às seis da tarde. É porque às seis
da tarde, a famosa Hora do Angelus, não é da tarde coisa nenhuma: é noite
fechada e chaveada. E, depois do Jornal Nacional, vai todo mundo para o berço,
porque vem chegando a madrugada, ô, o sereno vem caindo.
É
por isso, também, que esses caras enlouquecem no verão. Sai todo mundo para a
rua, e as mulheres usam aqueles shortinhos minúsculos, expondo generosamente as
bochechas das nádegas, e vão para os parques e as praças, onde ficam tomando
sol só de biquíni, e eles jogam baldes cheios de gelo nas cabeças uns dos
outros.
Essa
noite prematura me faz lembrar um fascinante evento da natureza que testemunhei
há exatos 20 anos: o eclipse total do sol. Deu-se aí no Brasil, no final de uma
manhã de céu limpo e ar fino. O dia estava claríssimo e, de repente, a Lua
interpôs-se entre o Sol e a Terra, e foi escurecendo, como se chegasse o
crepúsculo, e a temperatura tornou-se mais amena, e os passarinhos, iludidos
pela trama dos dois astros, recolheram-se para os galhos das árvores a fim de
repousar, e os cães uivavam de nostalgia para a noite que vinha, e nós, seres
humanos, ficamos tão extasiados com aquilo tudo que nos abraçávamos nas ruas e
gritávamos de encantamento.
As
mudanças da natureza mudam também a alma humana.
Acontece
que, assim como no Brasil as mulheres já estão se dourando ao sol e pondo seus
corpos sinuosos em vestidinhos leves como a consciência do Wianey Carlet, por
aqui até nevar, nevou. Todos estão se preparando para o inverno, inclusive os
esquilos.
Que
bicho interessante esse, o esquilo. Em Boston, você não vê cachorro ou gato
solto na rua; vê esquilo. Há também lebres e patos, mas as lebres são
antissociais, olham para a gente e saem correndo, e os patos preferem ficar
perto d’água. Os esquilos, não. Esquilos você encontra em toda parte e, no
Public Garden, um jardim botânico incrustado bem no centro da cidade, eles
estão de tal maneira acostumados ao contato com seres humanos que vêm comer na
sua mão, se você lhes oferece um quitute como, sei lá, nozes. Ande sempre com
nozes nos bolsos, quando em Boston.
Agora,
às vésperas do inverno, os esquilos estão em intensa atividade. Você pode ver
quatro, cinco, seis deles correndo e saltando pelos galhos das árvores
desfolhadas. Eles pulam em galhos altos e finos e de repente vão para os
telhados das casas e logo já estão no solo de novo ou escalando os troncos,
tudo isso com agilidade e velocidade espantosas. Alguns americanos me disseram
que eles andam agitados desse jeito porque estão abastecendo a despensa para o
inverno. Acho que eles moram em buracos nos troncos das árvores, que nem o Tico
e o Teco, mas vou investigar.
Por
estranho que possa parecer, também toda essa azáfama dos esquilos influenciou o
meu estado de espírito. Como eles, estou me preparando para o inverno,
comprando roupas adequadas e estocando comidas calóricas. Gordo. Vou me
transformar num gordo, nos Estados Unidos.
Os
dias gelados deste outono americano, raspando nos cinco graus Celsius
negativos, estão me deixando realmente apreensivo com o que virá depois de
dezembro. Outro dia, estava lendo um livro sobre o famoso inverno da temporada
1886-87. O autor descreveu-o desta forma:
“Em
novembro, a camada de neve tornou-se tão espessa que o gado não conseguia mais
pastar ao ar livre. Durante dois meses, a neve persistiu, para amenizar apenas
em janeiro, fazendo renascer a esperança de salvar os rebanhos. Mas logo
começaram a soprar ventos glaciais como até então jamais se havia visto nas
grandes planícies. No final de janeiro, a temperatura caiu a 30 graus abaixo de
zero do Canadá ao Texas. Os cowboys tiveram de se entocar nos ranchos, deixando
o gado à solta nos espaços gelados. Quando finalmente chegou a primavera,
encontraram cadáveres acumulados nos córregos e reentrâncias dos campos”.
Que
medo.
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