09
de novembro de 2014 | N° 17978
MURO
DE BERLIM
25 anos em busca de um novo
rumo
Após
o fim da Guerra Fria e o colapso do socialismo real, a esquerda ainda busca um
caminho alternativo como proposta ao hegemônico capitalismo de mercado
Meio
tonta, desorientada, ainda recompondo as ideias depois de um golpe violento.
Assim caminha a esquerda desde que o Muro de Berlim desabou em sua cabeça há 25
anos.
– No
fundo, no fundo, a verdade é que ainda estamos nos recuperando – avalia José
Maurício Domingues, doutor em Sociologia e professor do Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
– Honestamente,
não tenho respostas plenas sobre o que é o socialismo do século 21 – reconhece
o deputado federal carioca Chico Alencar, do Partido Socialismo e Liberdade, o
PSOL, para depois refletir: – Antes da queda do Muro, tínhamos tudo prontinho,
até o caminho para a revolução.
Não
se trata de um declínio da esquerda, pelo contrário – agora a fase já é de
reabilitação. Do Occupy Wall Street aos protestos na Europa, do bolivarianismo
à continuidade petista, do Fórum Social Mundial ao ativismo gay, há uma esquerda
bem mais heterogênea e pulverizada do que aquela alternativa única que ruiu em
9 de novembro de 1989.
A
questão é que, se naqueles tempos o objetivo era implantar um modelo de
sociedade já desenhado, livre do capitalismo – e, como se sabe, o plano foi um
fracasso –, hoje o desafio é criar um desenho novo.
–
Bem que eu queria dizer o contrário, mas estamos vivendo uma ausência de
possibilidades fora do capitalismo. A maior dificuldade dessa esquerda tão
plural é voltar a propor um modelo alternativo de sociedade – diz o professor
Ruy Braga, da Universidade de São Paulo (USP), pós-doutor em Sociologia e autor
do recém-lançado livro A Pulsão Plebeia: Trabalho, Precariedade e Rebeliões
Sociais.
Braga
sustenta que o recente avanço da esquerda em governos da América Latina,
favorecido pela crise neoliberal do final da década de 1990, “basicamente
reproduz o capitalismo de maneira renovada”. Tanto no Brasil quanto na
Venezuela, na Bolívia, no Equador, no Uruguai ou no Chile, percebe-se uma
ênfase nas políticas de inclusão social e na distribuição de renda – nos quatro
primeiros, também na independência econômica em relação aos Estados Unidos –,
mas são iniciativas ainda pálidas se o objetivo é romper com a soberania do
capital.
– É
preciso negociar o caminho de acordo com as possibilidades que se impõem –
flexibiliza José Maurício Domingues, sociólogo da Uerj. – Até a metade do
século 20, havia uma enorme mobilização a favor de mudanças mais radicais.
Hoje, os governos de esquerda enfrentam uma situação menos favorável a essas
rupturas, reflexo da derrota sofrida com a queda do Muro e com a consequente
descrença nesses processos.
Descrença
talvez compreensível, visto que até antigos comunistas migraram da esquerda
para o centro quando a Cortina de Ferro se dissolveu. Ali, sim, a esquerda
sucumbia a uma devastação jamais experimentada: sem a referência soviética,
partidos comunistas do Ocidente inteiro viravam pó ou viravam capitalistas.
O
caso mais emblemático foi o do gigante Partido Comunista Italiano, hoje Partido
Democrático, que no ano passado enfureceu militantes ao compor uma aliança com
o conservador e controverso ex-premier Silvio Berlusconi. No Brasil, expoentes
do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) fundaram o Partido Popular
Socialista, o PPS.
–
Eram grandes estruturas burocráticas orientadas pela União Soviética. Para
continuar existindo no aparelho eleitoral, precisaram aderir às ideias
vencedoras. O PPS, por exemplo, não tem mais vínculo algum com a esquerda –
analisa o cientista político Alvaro Bianchi, professor da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e especialista em história do pensamento político.
–
Discordo. Apenas fui derrotado e reconheço a minha derrota – contrapõe o
deputado federal Roberto Freire (SP), presidente nacional do PPS e ex-líder do
velho PCB. – Ainda sou um homem de esquerda, continuo marxista, mas alguns
grupos e partidos não entenderam o recado, ainda pensam que o Muro não caiu.
Abre-se
aí um debate inédito sobre a divisão contemporânea das forças políticas: se o
comandante do PPS – que apoiou privatizações no governo FH e reconhece o
capitalismo como o sistema possível – se classifica como “um homem de
esquerda”, o que separa a esquerda da direita na atualidade? Para Roberto
Freire, enquanto a primeira luta pela igualdade e refuta a competição, a
segunda acredita que somos naturalmente desiguais e que a hierarquia social é
inevitável.
O
professor Bianchi até concorda, mas não considera que as visões de Freire
contribuam mais para a igualdade do que para a competição. A melhor definição
para o conceito de esquerda, conforme Bianchi, permanece associada à ideia do
socialismo, ou seja, a um projeto de emancipação social das classes oprimidas.
–
Sem o controle estatal das grandes empresas, por exemplo, torna-se impossível
um processo de superação rápido e radical da miséria e do capitalismo –
argumenta ele.
–
Isso não faz o menor sentido – rebate Freire. – Os grandes capitalistas do
mundo atual não são mais os donos de indústrias: são os Bill Gates, os Steve
Jobs, os Mark Zuckerbergs. O processo de produzir riquezas está muito mais
centrado no conhecimento. Você pode estatizar prédios e bens, mas não há como
estatizar ideias e cérebros.
Então
por onde passaria uma revolução esquerdista, se é que ela é viável? Para o
deputado do PSOL Chico Alencar, o que parece mais ao alcance dos sonhos
socialistas é a chamada radicalização da democracia e dos meios de governar,
uma bandeira crescente ao redor do mundo. Não deixa de ser uma alternativa para
alçar o proletariado ao poder.
Com
a participação direta de cidadãos e movimentos populares nas tomadas de
decisões – por meio de assembleias e discussões incessantes, sem líderes que
imponham uma palavra final –, seria um processo natural a dilatação de
políticas públicas no combate à desigualdade. Da Primavera Árabe aos protestos
de 2013 no Brasil, essa concepção do povo se auto-organizando entusiasma a
esquerda pós-Muro.
–
Foi dessa nova forma de se organizar que surgiu o partido espanhol Podemos, um
fenômeno – celebra o sociólogo Ruy Braga.
De
fato, o partido que emergiu das manifestações de 2011, quando milhares foram às
ruas reivindicar mudanças na política e na sociedade espanhola, avança agora
como potência eleitoral. Uma pesquisa divulgada na semana passada revelou que o
Podemos, atualmente com cinco deputados no Parlamento Europeu, já lidera as
intenções de voto para a eleição de 2015.
A
notícia provocou arrepios nos bancos e na aristocracia do Velho Continente.
–
Interessante é que o Podemos se denomina um partido anticapitalista, e não
socialista. Fica claro que eles sabem muito bem o que não querem, mas não
exatamente o que querem – avalia Chico Alencar. – Fazem parte de uma nova
geração que tenta renovar o ideário socialista com uma transversalidade ideológica,
incorporando valores diversos como a luta contra os preconceitos, a questão
ambiental, o feminismo, os direitos civis.
Toda
essa animação em torno da democracia direta, no entanto, é encarada com
ceticismo pelos analistas políticos menos identificados com a esquerda. É o
caso de Marco Antonio Villa, pós-doutor em História e professor aposentado da
Universidade Federal de São Carlos:
–
Essa discussão sobre a democracia direta começa séculos antes de Cristo, em
Atenas, quando o próprio cidadão se representava sem delegar seu poder a outro.
Trazê-la para a realidade atual me parece uma maluquice. Em uma sociedade
moderna, com as pessoas envolvidas em seus trabalhos, como é possível essa
participação no cotidiano da política? Como é possível elas desenharem o modelo
econômico, político e social de uma sociedade? É evidente que o poder cairia
nas mãos de poucos.
Villa
acredita que, embora jamais tenha se visto uma esquerda tão plural e
diversificada, o que existem hoje são opções de governabilidade dentro do
capitalismo: algumas com viés mais social, outras com maior intervenção do
Estado, mas tudo capitalista. O sociólogo José Maurício Domingues discorda:
–
Vinte e cinco anos é muito pouco tempo, não é nada para a História. A ideia de
sermos todos livres e iguais é muito forte na Modernidade, e todo sistema
excludente tende a ser contestado pelas pessoas. Talvez demore um pouco,
certamente as ideias precisam ser melhor estruturadas, mas uma alternativa ao
capitalismo jamais deixará de existir.
POR
PAULO GERMANO | PAULO.GERMANO@ZEROHORA.COM.BR
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