16
de novembro de 2014 | N° 17985
ANTONIO
PRATA
Nas coxas
Senti
o alerta de mensagem vibrar, levei a mão ao bolso da calça e percebi que estava
sem o celular. “Céus”, pensei – não sem um ligeiro terror, desses que nos
acometem nos sonhos um segundo antes de virarem pesadelo – “minha coxa teve uma
alucinação”.
Faz
sentido. De uma hora pra outra, depois de 300 mil anos exercendo sobre a Terra
a única função de nos levar de cá pra lá, as coxas viraram um receptor táctil
de todas as tranqueiras que, com uma vibraçãozinha, surgem no nosso telefone.
“Chegando em cinco”, escreve um amigo (que chegará em 25) no Whatsapp: brrrrrr.
“Dentista amanhã, 16h30min”, avisa o Google Agenda: brrrrrr. “Acordado?”,
escreve por SMS, no meio da madrugada, o (a) ex namorado(a): brrrrrr. “21
provas de que Zeca Pagodinho é a pessoa mais legal do Brasil”, postam no
Facebook, tagueando, sabe-se lá porque, o seu nome: brrrrrr.
Nada
mais justo que esses 72,54 cm2 de pele (se você tiver um iPhone; caso tenha um
Samsung Galaxy são 91,12 cm2), até então praticamente surdos-mudos, entrassem
em parafuso ao serem subitamente alçados à categoria de telex da epiderme. É
mais ou menos como pegar, sei lá, o Maguila e dizer: a partir de agora você é o
âncora do Jornal Nacional.
Imagino
o rebu lá no cérebro, assim que telefones passaram a vibrar no bolso. Os
neurônios responsáveis pela sensibilidade das coxas deviam estar todos deitados
em redes, fumando narguilé e assoviando Bob Marley. Só eram convocados ao
trabalho quando você dava um colo ou usava o laptop. Mesmo nessas horas, era o
emprego mais fácil do mundo, bastava gritarem lá pra dentro: “aí, galera, avisa
que deitou alguém!”, “aí, galera, tá rolando laptop! Tá meio quente!” e voltar
pra pasmaceira. Então surgiram os celulares e esses neurônios obesos se viram
obrigados a saltar do cochilo pro Iron Man: sem escalas.
Agora
mesmo, enquanto você lê esta crônica, uma revolução acontece na sua massa
cinzenta. Há anúncios em todas as páginas da Gazeta do Córtex: “Coxa contrata
neurônios. Áreas: epiderme, terminações nervosas, medula, cérebro”. Novos
escritórios estão sendo construídos, baias são abertas, faixas de ônibus e de
bicicleta são pintadas nos nervos, para que as células consigam chegar mais
rápido ao novo emprego. Já há quem arrisque, no Twitter do lobo frontal: “a
coxa é o novo olho”.
Fico
imaginando o que acontecerá com esses centímetros quadrados do nosso corpo em
uns cem mil anos. Ficarão mais sensíveis do que as pontas dos dedos, os
mamilos, o clitóris e a glande? E a parte do cérebro responsável por eles, de
pequena choupana cheia de redes se transformará num ABC Paulista neuronal?
Seremos capazes de ler braile com as coxas? Gozar com as coxas? Prever a chuva,
dar a temperatura, dizer “tô sentindo que cê não tá legal, hoje”, com as coxas?
Sei
lá. O que sei é que enquanto nada disso acontece, numa tarde abafada de 2014,
sobrecarregada, estafada, zumbi, minha coxa alucina, recebendo sinais do além.
Ou talvez seja só o cérebro, chefe pentelho, conferindo: “Acordada?”.
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