02 de setembro de 2014 | N° 17910
DAVID COIMBRA
MINHA MÁXIMA CULPA
A verdade é que a torcida do Inter é racista. A do
Corinthians também. E a do Vasco, que foi o primeiro clube grande a aceitar
negros no Brasil, é igualmente racista. Assim como a do Criciúma. E a do Íbis.
A torcida da Seleção Brasileira, aliás, é racista.
Aqui, em Boston, vou dizer: a torcida do Red Sox é racista.
Mas a do rival, dos Yankees, de Nova York, não é menos racista. Você viu a
situação de Ferguson, no Missouri? É óbvio que lá eles são racistas – os
Estados Unidos são racistas. Mas o Brasil também é racista.
A Alemanha, apesar da contrição eterna dos alemães em razão
do holocausto, é racista. Israel, que sofreu com o holocausto, é racista. A
África do Sul é racista, embora lá tenha vivido e ensinado Mandela, que
aprendeu a não ser racista. Os ingleses e holandeses, que colonizaram a África
do Sul, são racistas. E os zulus, hotentotes e xhosas, que lá viviam antes dos
ingleses, são muitíssimo racistas.
Não existe nenhum lugar no mundo em que não haja racismo,
simplesmente porque o ser humano teme o diferente. Então, esse negócio de dizer
que a torcida do Grêmio é racista, como se fosse atribuição exclusiva dos
gremistas, é tolice. Grêmio e Inter têm mais ou menos 6 milhões de torcedores
cada um. Entre esses, vários racistas e não racistas. Arrisco-me a dizer que
mais racistas do que não racistas.
Agora, temos sutilezas. Pelo seguinte: todo racismo é
abjeto, mas há, sim, formas de racismo mais graves do que outras, por razões
históricas. O racismo contra os negros é muito mais criminoso, porque os negros
sofreram quase 400 anos de escravidão em praticamente todo o Ocidente e em
partes do Oriente.
Você sofrer discriminação porque é branco pode ser
desagradável, mas dificilmente significará opressão, porque nenhum branco viveu
como cativo no Brasil, com a provável exceção da Escrava Isaura.
Como se justificava a escravidão? Como um adepto do
cristianismo, a religião do amor e da igualdade entre os homens, conseguia
chegar a uma terra, arrancar um menino da sua família, acorrentá-lo e levá-lo
para outro continente onde seria vendido como gado, espancado, mutilado e
obrigado a trabalhar para que outros lucrassem?
Como um cristão suportava psicologicamente o cometimento
desse ato criminoso e desumano? Pensando que não era um ato criminoso. Pensando
que negros eram menos humanos do que brancos. Pensando que negros, por serem
negros, fossem inferiores.
É por isso que a discriminação racial praticada contra
negros é pior do que a praticada contra brancos. Porque nenhum branco jamais
foi considerado inferior ou menos humano por ser branco. O Brasil tem essa
dívida com a História, e precisa pagá-la. Uma das formas de pagamento é a
repressão dura a qualquer manifestação racista contra negros.
O Brasil reflete pouco sobre essas questões. Nos últimos
tempos, tem tateado erraticamente em busca dessa reflexão. Gremistas sempre
chamaram colorados de macacos para irritá-los. Essa é a função da ofensa:
irritar o outro.
Quando alguém chama a mãe de um adversário de vagabunda, não
significa que pense mesmo que aquela senhora de avental, cozinhando em casa,
seja prostituta ou algo que o valha: significa que quer insultar o adversário.
Ponto.
Logo, entendo quando um gremista diz que não chama um
colorado de macaco por racismo. Entendo quando um negro chama outro negro de
macaco. A ideia é a provocação. Só que esse tipo de provocação invade aquele
território da história vergonhosa do Brasil do qual devemos nos penitenciar.
Os brasileiros têm de sentir culpa pelo que fizemos contra
os negros, como os alemães sentem culpa pelo holocausto e se autoflagelam todos
os dias por isso. Fale em Hitler ou em antissemitismo na Alemanha, e veja a
reação indignada e envergonhada dos alemães. É como devemos nos comportar em
relação à discriminação contra negros.
Nós temos de entender isso. Nós temos de entender que
nascemos com uma dívida a pagar. Que precisamos de expiação. Os (poucos)
gremistas que ainda insistem com cantos racistas talvez não sejam racistas, mas
certamente são burros. Ou, no mínimo, desinformados. Não compreendem que, um
dia, o Brasil até pode ser perdoado pelo crime cometido, mas que o crime
cometido não será, nem deve ser jamais, esquecido.
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