segunda-feira, 1 de dezembro de 2008


MOACYR SCLIAR

O futuro na geladeira

Um dia ela ainda ingressaria no curso de administração, um dia brindaria a seu futuro; era só questão de esperar

Amélia, 80, interrompe sonho de ter vaga na USP para comprar geladeira. Amélia Pires fará 80 anos em 6 de dezembro um pouco mais distante de seu sonho. Desde 2004, presta a Fuvest. Quer um diploma do curso de administração da USP.

Neste ano, porém, não esteve entre os 138.242 aspirantes a vaga na universidade. A geladeira estava imprestável, e o dinheiro da inscrição - ajuda de um sobrinho - foi usado para pagar a prestação de uma nova. Cotidiano, 24 de novembro de 2008

NÃO FOI UMA decisão fácil, como se pode imaginar. Curso de administração ou geladeira? A favor de ambas as coisas, o curso e a geladeira, havia argumentos. O curso era algo com que sonhava havia muito tempo, desde jovem, para dizer a verdade.

Primeiro, porque era uma fervorosa admiradora da atividade em si, da administração. Organizar as coisas, fazer com que funcionem, levar uma empresa ao sucesso, mesmo em épocas de crise, sobretudo em épocas de crise, parecia-lhe um objetivo verdadeiramente arrebatador.

Com o curso, ela poderia tornar-se, mesmo com idade avançada, numa daquelas dinâmicas executivas cuja foto via em jornais e em revistas.

Mas a geladeira... A verdade é que ela precisava de uma geladeira nova. A antiga estava estragada, e tão estragada que o homem do conserto aconselhara-a a esquecer "aquele traste" e partir para algo mais moderno.

E isso precisava ser feito com urgência: todos os dias estava jogando fora comida que estragara por causa do inconfiável eletrodoméstico.

Era o curso ou a geladeira. Era apostar no futuro ou resolver os problemas do presente. Ou se inscrevia na universidade ou pagava a prestação na loja: tinha de escolher. Dilema penoso. Durante duas noites não dormiu, fazendo a si própria cálculos e ponderações.

"Faça o curso", sussurava-lhe ao ouvido uma vozinha, "você será outra pessoa, uma pessoa com conhecimento, com dignidade, uma pessoa que todos respeitarão". E aí outra vozinha intervinha: "Deixe de bobagens, querida.

Geladeira é comida, e comida é o que importa. Como é que você vai se alimentar, se a comida continuar estragando desse jeito? Seja prática". Duas vozinhas. Anjinho e diabinho? Nesse caso, qual era a voz do anjinho, qual a do diabinho? Mistério.

Na manhã do terceiro dia sentiu um mau cheiro insuportável, vindo da cozinha. Foi até lá, abriu a geladeira e, claro, era a carne que simplesmente tinha apodrecido. Foi a gota d'água. Vestiu-se, foi até a loja, e comprou a geladeira nova.

Que lhe foi entregue naquele mesmo dia. Era uma bela geladeira, com muitos dispositivos que ela mal conhecia. "Vou ter de fazer um curso para aprender a operar essa coisa", disse ao homem da entrega.

Ele concordou: "Sempre é bom fazer cursos". Instalada a geladeira, ela tratou de colocar ali os alimentos e as bebidas. Foi então que encontrou a garrafa de champanhe.

O champanhe que tinha comprado para celebrar com os vizinhos a sua entrada na universidade. Suspirou. O que fazer com aquilo, agora? Dar de presente para o sobrinho que a ajudara com o dinheiro da inscrição? Resolveu guardar a garrafa.

Bem no fundo da geladeira. Um dia ela ainda ingressaria no curso de administração, um dia brindaria a seu futuro. Era só questão de esperar. Sem medo: uma boa geladeira conserva qualquer champanhe.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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