terça-feira, 9 de dezembro de 2008



09 de dezembro de 2008
N° 15814 - MOACYR SCLIAR


O que fizeste?

Notícias sobre violência fazem parte de nosso cotidiano; estamos tão acostumados a elas que não raro reagimos com indiferença às sombrias manchetes. Mas às vezes acontecem coisas que nos abalam, que nos sacodem, que nos obrigam a pensar.

Dias atrás, o comerciante Adair Pereira da Rosa, 56 anos, foi assaltado, junto com a esposa, a professora Mara Regina da Rosa, na pizzaria da família em Gravataí. Eram três os bandidos, estavam armados e Adair não reagiu: pediu apenas que não machucassem ninguém. Mara entregou o dinheiro que tinha no caixa, R$ 200.

E aí aconteceu algo que ultrapassa tudo quanto se possa imaginar em termos de crueldade. Um dos assaltantes mandou que Adair se ajoelhasse e matou-o com um tiro na nuca. Gesto brutal, que desafia nossa compreensão e nos faz desesperar da racionalidade humana.

Mas a história tem um desdobramento. Segundo a notícia, outro assaltante, indignado com o que acabava de acontecer, gritou: “O que tu fez, cara?”.

A pergunta chama a atenção. É a mesma que Deus dirigiu a Caim quando este havia acabado de matar Abel, e que em geral expressamos num português melhor: “O que fizeste?”.

No caso da divindade, não se trata de surpresa ou de averiguação. O Senhor sabe perfeitamente o que Caim fez. Sua finalidade é outra; perguntando, quer que o assassino tome consciência de seu crime.

O assaltante que interroga o cúmplice, porém, de fato não entende o que se passou, não consegue compreender a razão pela qual o criminoso não respeitou aquilo que provavelmente tinha sido acordado: nada de vítimas. A resposta que daríamos a sua pergunta é: “Só Deus sabe” Mas o assaltante não é Deus.

Quem se julgou Deus foi o criminoso, que, sentindo-se infinitamente poderoso (afinal, empunhava um revólver, coisa que dá a muitos a sensação de poder absoluto), exigiu, muito simbolicamente, que o homem se ajoelhasse diante dele antes de matá-lo.

Entre o poder alucinado do assassino e o desamparo absoluto da vítima, está o segundo assaltante, com sua perplexa raiva, da qual, e de alguma maneira, participamos.

Qualquer esperança de resolver o problema do crime depende, paradoxalmente, dessa perplexidade, que indica a existência de uma terra de ninguém, de um território de limite indefinido separando as pessoas comuns dos criminosos. É deste território que o segundo assaltante brada, raivoso e aflito: “O que tu fez, cara?”.

Mas é ali que podemos fazer alguma coisa para evitar a alucinada violência que caracteriza nossa época. Este é o lugar para prevenção da violência através do processo educativo. Que não pode ser feito de forma ingênua, romântica; não pode excluir punição.

Crime exige castigo, até porque o castigo, adequadamente instituído, educa. O que não podemos é ficar inermes, aguardando que Deus nos interrogue: “O que fizeste?”. Alguma coisa temos de fazer. Quando mais não seja, como homenagem à memória de Adair Pereira da Rosa.

Para o último fim de semana estava programada a realização, em Florianópolis ( Universidade Federal de Santa Catarina), do Congresso Brasileiro de Saúde Mental, no qual eu deveria dar uma conferência.

Preocupado com a situação no vizinho Estado, resolvi telefonar dias antes aos organizadores para saber se o evento estava confirmado. Estava.

Mais que isto: “Agora ficou ainda mais importante realizar o congresso”, disse a pessoa que me atendeu, uma resposta que reflete a atitude corajosa dos catarinenses diante da desgraça.

O Congresso atraiu muita gente e cumpriu suas finalidades, examinando uma área crucial na saúde pública e propondo soluções.

E o fim de semana estava glorioso, sol brilhando e mar azul: a bela e brava Santa Catarina que nós conhecemos e da qual somos eternos admiradores.

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