03 DE ABRIL DE 2021
J.J. CAMARGO
MEDICINA NARRATIVA: A REDENÇÃO
"A pessoa adoece por carência de verdadeiras relações pessoais. Se você lhe der impessoalidade e neutralidade dará exatamente o que lhe causou a doença. Nossa tarefa é a da construção do encontro. E não há encontro que seja impessoal. Impessoal é o desencontro."
(Hélio Pellegrino)
Com os impressionantes avanços da medicina, se pode dizer, com uma dose sadia de orgulho médico, que sabemos muito mais do que nossos antecessores. Mas isso só aumenta o constrangimento de percebermos que, a julgar pelo aumento das demandas judiciais e reclamações nas mídias sociais, os pacientes não nos percebem melhores. Atribuir a culpa às circunstâncias que encurtaram o tempo de atendimento e impuseram aos doentes a loteria de sair de casa sem nenhuma certeza de que o médico que estará do outro lado da mesa dará a mesma importância a este encontro faz algum sentido, porque essa interação é, em resumo, uma relação entre duas pessoas, e o entorno deve ser ignorado quando elas se encontram.
Colocar a culpa na tecnologia que, com seus braços longos, tem aumentado a distância entre o médico e o seu paciente é uma simplificação inadequada e ingênua. Na verdade, se utilizarmos menos da tecnologia disponível, devemos nos considerar fraudulentos na expectativa dos pacientes, mas se esperarmos que este novo mundo de monitores coloridos possa substituir a figura do médico, estaremos renegando a nossa essência, e abdicando do acesso ao mais nobre dos sentimentos humanos: a gratidão, que é o subproduto mais doce de uma relação humana generosa.
A medicina narrativa, que veio para polir as arestas de uma relação que se tornou superficial e rígida, tem sido adotada como instrumento precioso para, através de literatura, humanizar os profissionais da saúde. A inclusão das disciplinas sobre humanidades nos currículos das melhores faculdades de medicina do mundo não deixa dúvida que a aridez da atitude de quem só aprendeu a tratar das doenças, e que ignora o que pensa e sente quem está doente, está minando a figura humana do médico, visto até há poucos anos como uma referência afetiva da comunidade.
O estudo da literatura, bem como do cinema e de outras artes, está sendo introduzido como disciplina obrigatória do curso médico das melhores universidades internacionais, com o intuito de resgatar o glamour de uma profissão que só é desmerecida por quem nunca adoeceu, mas que, com o aumento da expectativa de vida, um dia descobrirá.
A relação M/P é, em resumo, um jogo de sedução e conquista, e temos que admitir que a mecanização do atendimento médico não tem nada de sedutor.
A parceria, essa que se nutre da proximidade e que é a marca afetiva do encontro dos amigos nos botecos do fim do dia, é o sentimento idealizado por qualquer pessoa que se sinta ameaçada e passe a idealizar a figura do médico como a imagem do último socorro.
O que a chamada medicina narrativa tem proposto, é o uso qualificado da palavra para que o médico aprenda a se expressar melhor, a se fazer entender melhor, qualquer que seja o nível intelectual do paciente. E pelo mesmo caminho aprenda a ouvir, uma necessidade de qualquer relação pessoal e que tem sido tão ostensivamente negligenciada. Há, finalmente, a consciência de que em algum momento da história recente perdemos o compasso. O que se pretende agora é o resgate do afeto, buscando na interface com a literatura a humanização das novas gerações médicas. E isso tudo em benefício do paciente, que se vê, como nunca, um intruso no processo do qual ele é própria razão de ser.
Não recuperaremos a histórica figura do parceiro confiável com esse atendimento surreal em que cada especialista cuida de um pedaço do corpo de quem, se sabendo único, não entende a fragmentação e se percebe abandonado e desprotegido. E peregrina pelos consultórios como um zumbi, desorientado e solitário.
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