31 DE DEZEMBRO DE 2020
TICIANO OSÓRIO | INTERINO
Saudade das balas azedinhas
Esta época do ano intensifica a saudade que tenho sentido do cinema. Não dos filmes, que a esses eu assisto diariamente, às vezes dois ou três. Mas das salas de cinema, um segundo lar desde que me dou por gente.
Lembro da emoção de ir às matinês com minha mãe, lembro de o Cine Victoria transbordando para uma nova aventura dos Trapalhões, lembro das balas azedinhas que nos acompanhavam nesse ritual.
Acho que lembro do primeiro filme que vi sozinho - talvez Metrópolis, de Fritz Lang, no Avenida -, mas com certeza não esqueço da primeira e única vez que fui barrado, por causa da idade: O Exterminador do Futuro (1984), no Baltimore. Quando voltei com o pai, vencida a fila na calçada da Osvaldo Aranha, me senti como o próprio Schwarzenegger cumprindo a antológica promessa de seu personagem ("I?ll be back"). Falando em filas na calçada, elas eram um ponto de encontro e um acontecimento nas sessões da meia-noite do ABC.
Victoria, Avenida, Baltimore, ABC. É, sou velho o suficiente para ter vivido a era dos cinemas de calçada, cada um com sua própria personalidade.
Ao fim de cada ano - daí a nostalgia -, além de fechar em um caderno a lista dos filmes que eu tinha visto, com as respectivas estrelinhas ao lado, também fechava o campeonato das salas que eu mais frequentava. Geralmente, graças ao fator local, ganhava o Avenida ou o Baltimore, mas houve um tempo em que o Coral, graças a uma seleção de craques, foi um forte concorrente. Veio dessa época a tradição, hoje interrompida pela pandemia, de terminar (no dia 31) ou começar (no dia 1º) o ano dentro de um cinema.
Os cinemas de calçada praticamente morreram, e agora os cinemas de shopping estão em xeque. Passaram mais de oito meses fechados em 2020, e, pelo menos em Porto Alegre, não tiveram muito público nas semanas de outubro e novembro em que reabriram. A baixa audiência não deve ser creditada apenas ao medo de contágio - que não impede aglomerações em outros espaços de lazer. O longo hiato pode ter estimulado uma mudança de hábito. As pessoas vão continuar assistindo a filmes, mas talvez no conforto e na segurança de seus lares, e gastando menos - o preço de um ingresso no fim de semana se equipara ou é superior ao de uma mensalidade de plataforma de streaming. Para uma família com dois filhos, por exemplo, isso faz uma grande diferença no bolso. Sobretudo em um cenário de perdas econômicas.
De olho nessa transformação e no coronavírus, a Warner anunciou recentemente que todos os seus filmes de 2021 serão lançados simultaneamente nos cinemas e na HBO Max (que, hoje, só existe nos EUA). O sucesso ou não da estratégia - e também uma eventual e inédita vitória da Netflix no Oscar - pode definir caminhos para a indústria e o mercado cinematográficos. Há quem diga que os cinemas vão ficar restritos às superproduções, aos eventos de massa, outros entendem o contrário, que se tornarão um circuito para os apreciadores dos chamados filmes de arte. Ou pode ser que, depois de todo mundo vacinado, tudo volte ao normal.
Por enquanto, não há nenhuma cena pós-créditos que dê uma pista concreta do que vai acontecer. Torço pelo lanterninha no fim do túnel, porque, em casa, apesar de muitos pontos a favor, se perde a tal da magia da sala escura. Perde-se a imersão proporcionada pela combinação de tela grande, som de altíssima qualidade, ausência de distrações (fora um que outro espectador inconveniente) e nossa incapacidade de pausar, retroceder ou avançar a trama - fundamental para nos entregarmos. Perde-se também a comunhão momentânea com um exército de estranhos, muito bem-vinda e eficiente em comédias, filmes de terror e dramas que fazem soluçar. Ah, que saudade daquelas risadas que sucedem um baita susto, que saudade de ser mais um a levantar da poltrona enxugando as lágrimas, que saudade da escuridão acolhedora e do silêncio eloquente, que saudade das balas azedinhas e dos doces encontros na porta de um cinema.
*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 15/01.
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