11 DE DEZEMBRO DE 2020
CAPA
George Orwell explica o mundo
Escritor britânico morto há 70 anos ganha novas edições no Brasil de livros que falam de totalitarismo e opressão
Estamos vivendo tempos orwellianos. Essa percepção global ajuda a explicar o retorno de George Orwell (1903-1950) às listas de escritores mais populares e vendidos mundo afora.
No que depender da editora Companhia das Letras, esse sucesso seguirá a todo vapor no Brasil. Até o final deste ano, chegam às livrarias a graphic novel 1984 (adaptada pelo artista Fido Nesti) e uma edição especial de A Fazenda dos Animais (antes conhecido como A Revolução dos Bichos), ambos também com versões pelo selo Penguin Companhia. Já em 2021, o objetivo é publicar Homenagem à Catalunha e O Ministério da Verdade: Uma Biografia de 1984, escrito pelo jornalista Dorian Lynskey.
- Orwell já foi o autor do panóptico, do Big Brother. Hoje, quando a verdade é mutilada, distorcida, nós recorremos a ele - explica Emilio Fraia, editor da Companhia das Letras responsável também pela versão em quadrinhos de A Revolução dos Bichos, do ilustrador gaúcho Odyr. - Esse tema da verdade é o coração da nossa experiência social e política em 2020. Ler Orwell é entender de forma cristalina os mecanismos do autoritarismo e de governos com inclinações fascistas. Com todo o aparato crítico, as novas edições podem nos auxiliar nesse mergulho.
Nascido em uma colônia britânica na Índia, Eric Arthur Blair - que viria adotar o pseudônimo George Orwell - foi um crítico do capitalismo que usou suas palavras para atacar o autoritarismo, o fascismo e a destruição da verdade. Muito antes das fake news nas redes sociais, os pesadelos de Orwell eram ligados à truculência de Stalin na extinta União Soviética. Isso levou a uma apropriação de sua obra como arma ideológica contra o socialismo durante a Guerra Fria
- Uma leitura é sempre pautada pelo seu contexto, mas é importante que isso fique claro para o leitor - destaca Luara França, editora do selo Penguin. - Nas edições da Penguin, por exemplo, os textos de introdução tentam trazer para o leitor contemporâneo uma espécie de história do livro, porque isso é importante para que ele forme sua própria opinião durante a leitura.
O aviso é especialmente pertinente no caso de A Fazenda dos Animais. Aos leitores familiarizados com A Revolução dos Bichos, o novo título pode causar estranhamento (embora seja a tradução mais literal para o original Animal Farm). Alegoria bastante direta inspirada na Revolução Russa, o livro narra como líderes mal-intencionados podem deturpar os ideais libertários que motivaram uma rebelião e promover uma simples substituição da casta exploradora.
Tradução
Como narra o professor e crítico Marcelo Pen no posfácio da edição especial da obra, A Fazenda dos Animais, lançada em 1945, foi apadrinhada pela CIA, a agência de inteligência dos EUA, que patrocinou secretamente a tradução do texto para mais de 30 idiomas, nos anos 1950. A ideia, nos anos da Guerra Fria, era desmoralizar a URSS aos olhos do mundo.
No Brasil, a obra desembarcou pelas mãos de apoiadores do golpe militar de 1964. Supostamente preocupados com os efeitos da Revolução Cubana no continente, eles viram no livro um alerta sobre os riscos de qualquer movimento revolucionário se voltar contra a classe trabalhadora.
Assim, o tradutor Heitor Aquino Ferreira, um tenente que trabalharia com os presidentes Costa e Silva e Ernesto Geisel, colocou no título e no livro uma revolução que nunca esteve no texto original de Orwell, além de outros desvios. E essa tradução seguiria intacta pelos próximos 55 anos.
- Mais do que responder o porquê de A Revolução dos Bichos ter se tornado A Fazenda dos Animais, a nova edição busca entender como Animal Farm se tornou A Revolução dos Bichos - resume Emilio Fraia.
A fortuna crítica que acompanha a edição especial de A Fazenda dos Animais conta com ensaios de Edmund Wilson, Northrop Frye, Raymond Williams, Daphne Patai, Morris Dickstein, Harold Bloom e Alex Woloch.
1984, por sua vez, mergulha desde a primeira página em um pesadelo ilustrado pelo brasileiro Fido Nesti.
- No começo, foi inevitável ficar intimidado com a responsabilidade de criar a adaptação para este formato - revela Nesti. - Mas venho recebendo comentários de leitores sobre como consegui traduzir em imagens o que tinham na cabeça ao ler o original. É interessante ver como esse imaginário parece encontrar ecos em lugares tão distintos como Brasil, Polônia, França, Hungria e Portugal, entre outros.
Reforçando a atmosfera opressiva e o clima londrino que permeiam a narrativa de Orwell, a paleta cinza é a predominante na graphic novel. Para Nesti, é uma forma de representar o que se passa na cabeça de Winston, o protagonista: "um estado de espírito carregado de angústia, desespero e terror".
Um dos títulos mais populares da literatura distópica, 1984 narra um futuro próximo em que o Império Britânico foi transformado em um regime ditatorial, comandado com punhos de ferro pelo Grande Irmão. A figura mítica controla todos graças a um sistema de supervigilância e a institucionalização da mentira. A riqueza da obra a transformou em uma espécie de manual contra o autoritarismo. Nesti destaca:
- Estamos vendo uma escalada de governos autoritários que cospem ódio, ideias retrógradas e realidades paralelas. Junto a isso, temos uma palpável e crescente erosão de nossa privacidade, em que o indivíduo se vê constantemente vigiado e parece se tornar cada vez menos humano, mais parecido com uma máquina, desprovido de raciocínio próprio. O aviso foi dado há muito tempo. É preciso saber ouvir.
Produção de Bibiana Davila
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