sábado, 12 de dezembro de 2020


12 DE DEZEMBRO DE 2020
COM A PALAVRA - LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA - Economista, 86 anos

A desigualdade é o problema fundamental do Brasil

Professor emérito da FGV, foi três vezes ministro nos governos Sarney e FHC. É também cientista político, cientista social, administrador e advogado

Com o bolso dos brasileiros pressionado pela inflação nas alturas, Luiz Carlos Bresser-Pereira assumiu, em 1987, o cargo de ministro da Fazenda no governo José Sarney. Trinta e três anos depois, o fantasma do descontrole dos preços não assusta mais. Mas a economia segue colecionando dificuldades, aprofundadas em 2020 pela pandemia. Aos 86 anos, Bresser-Pereira demonstra preocupação com o cenário atual. Professor emérito da Fundação Getulio Vargas (FGV), o ex-ministro é uma das principais vozes do desenvolvimentismo no país - a corrente defende a participação do Estado na economia. Ele conversou com ZH, por telefone, sobre os desafios brasileiros, incluindo o baixo crescimento dos últimos anos e a elevada desigualdade social. A seguir, veja os principais trechos da entrevista com o economista, que também integrou o governo Fernando Henrique Cardoso, no comando de outras duas pastas (Ciência e Tecnologia e Administração Federal e Reforma do Estado).

A pandemia de coronavírus atingiu em cheio a economia brasileira em 2020. Como o senhor descreve o cenário para a área?

O coronavírus causou uma profunda recessão, não apenas no Brasil, mas em praticamente todo o mundo. Talvez só a China e algum país pequeno não tenham recessão neste ano. O Brasil foi bastante atingido, mas não foi o campeão sob esse ponto de vista. É que houve grande gasto com o auxílio emergencial. Realmente, o auxílio sustentou a demanda dos mais pobres. Tem, portanto, papel importante para fazer com que a queda do Produto Interno Bruto (PIB) fique próxima de 5% neste ano, e não de 9%. Agora, do ponto de vista da saúde, o Brasil foi um desastre na defesa da vida. Não falhou completamente só o governo federal. Também falharam os brasileiros. Faltou o espírito de solidariedade. Faltou o espírito cívico e republicano que nos obriga a ter uma ação individual muito mais forte, não só se fechando em casa sempre que possível, mas também usando máscara e tudo o mais. Com isso, os resultados são muito ruins. Estamos entre os piores do mundo. Uma tristeza. Esse é o quadro do Brasil em 2020. Mas também é preciso voltar a olhar para o quadro do país em 2014.

Por quê?

Porque, naquele ano, com a violenta queda nos preços das commodities (matérias-primas), o Brasil entra em uma grande recessão, que se soma a uma crise fiscal. O governo Dilma Rousseff perdeu o controle da parte fiscal. Gastou muito mais do que podia. Então, houve uma recessão que durou até 2016. A recuperação dos anos seguintes foi incrivelmente baixa, coisa de 1% ao ano (crescimento do PIB). Na verdade, o Brasil não saiu da crise econômica. Continua assim. A taxa de câmbio, que se deprecia fortemente nas crises (o dólar sobe, na comparação com o real), depreciou-se também em 2014. Quando acaba uma crise, a taxa volta a se apreciar (o real se valoriza). Mas isso não ocorreu. A taxa de câmbio até está boa para a indústria (acima de R$ 5, incentivando exportações). Mas as empresas precisariam ter uma razoável segurança de que o governo vai ser capaz de manter essa taxa em nível satisfatório, perto de R$ 5 por dólar, no longo prazo. E isso as empresas não têm em absoluto. Há uma perda de confiança, não só internamente, mas também no Exterior. O Brasil viu uma saída de dólares muito grande nesses últimos anos, especialmente em 2020. Só não é mais preocupante porque temos um superávit em conta corrente (mais exportações do que compras em dólar), já que as importações também caíram muito.

O BRASIL HISTORICAMENTE CONVIVE COM A DESIGUALDADE SOCIAL. ECONOMISTAS MENCIONAM QUE O PROBLEMA TENDE A PIORAR APÓS A PANDEMIA E COM O FIM DE POLÍTICAS COMO O AUXÍLIO EMERGENCIAL. O QUANTO A SITUAÇÃO PREOCUPA?

Para mim, a desigualdade é o problema fundamental do Brasil. Nessa desigualdade, há um elemento racista também. Agora, como se enfrenta isso? A primeira coisa: não dá para diminuir a desigualdade sem crescimento. Como se reduz a desigualdade em período de crescimento? Há duas políticas fundamentais. Uma é desenvolver um Estado de bem-estar social (o Estado como agente da melhoria social e econômica). O Sistemas Único de Saúde (SUS), por exemplo, diminuiu a desigualdade de maneira profunda. Apesar de todas as limitações do SUS, o padrão de vida do povo melhorou de maneira respeitável. Uma coisa é o gasto social, que é muito eficiente. Sempre mostro a comparação entre o sistema de saúde americano e o dos países europeus. O sistema americano é quase todo privado. Entre público e privado, custa 17% do PIB. Nos países ricos da Europa, onde o sistema é público, custa 11% do PIB. Então, é preciso continuar desenvolvendo o Estado de bem-estar social. A outra questão é ter uma reforma tributária que torne progressiva a cobrança de impostos (ou seja, maior incidência tributária sobre grandes patrimônios). Temos de fazer isso no Brasil.

O senhor destaca que as dificuldades econômicas vêm de antes da pandemia. Levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV) indicou que o Brasil caminha para fechar esta década (2011-2020) com o pior desempenho econômico em pelo menos 120 anos. O resultado tão baixo está atrelado a quais fatores?

É preciso analisar o cenário no longo prazo. Tenho trabalhado muito sobre essas questões. O Brasil, desde os anos 1980, é uma economia semiestagnada. Por quê? O crescimento médio da renda per capita no Brasil, nesses 40 anos, foi de 0,8% ao ano. Enquanto isso, o crescimento nos países ricos foi de 1,7%, mais do que o dobro. Já o crescimento nos países em desenvolvimento foi de 3%. Ou seja, é quase uma estagnação no Brasil. O país era um dos que mais cresciam antes de 1980. Desde então, avança muito pouco. A década de 1980 foi de estagnação, assim como a atual. Todos sabem a causa. Houve uma grande crise com a dívida externa (nos anos 1980). O Brasil foi tentar crescer com endividamento externo, o que é um erro, e entrou em uma grande crise. Isso implicou em uma grande inflação. No início dos anos 2000, houve um certo crescimento devido ao boom das commodities, beneficiando o governo Lula. Mas, em seguida, até 2014, as taxas de crescimento continuaram muito baixas.

Por quê?

Uma causa direta foi o baixo crescimento do investimento privado, além de uma grande queda do investimento público. A variável fundamental para o desenvolvimento econômico é a taxa de investimento, com a incorporação, naturalmente, de progresso técnico. O investimento público caiu muito porque a poupança pública caiu muito. Isso já aconteceu nos anos 1980, por causa de uma crise fiscal. Eu já falava disso. A crise que surge em 1980 se mantém até hoje. O Brasil tinha uma espécie de poupança que financiava o investimento público. Era fundamental para o desenvolvimento. Já o investimento privado foi profundamente prejudicado pelo fato de que, nos anos 1990, o país fez a abertura comercial e financeira. Apoiei a abertura comercial à época, mas hoje não apoiaria, porque desmontamos, sem saber, mecanismo que neutralizava a doença holandesa (o termo define períodos em que o aumento das exportações de commodities valoriza a moeda local e causa perda de fôlego da indústria, que fica mais cara e menos competitiva em relação a concorrentes externos). O que neutralizava a doença holandesa eram tarifas aduaneiras muito altas. Eu, inclusive, como ministro da Fazenda, em 1987, achei que isso era protecionismo. Mas não era tudo protecionismo. Quando foi feita a abertura comercial, as empresas passaram a ter uma desvantagem competitiva. Só aprendi isso quando ajudei a desenvolver o modelo da doença holandesa, que poucos economistas usam. Outra questão é que a abertura financeira facilitou o aumento da taxa de juros para atrair capitais ao país. O governo teve mais uma vez a política equivocada de tentar crescer com poupança externa. O déficit em conta corrente provoca uma entrada adicional de capitais em relação à saída. Essa entrada aprecia a taxa de câmbio no longo prazo (real sobe ante o dólar). Há uma desvantagem competitiva muito grande para as empresas. Agora, como isso pode ser resolvido? Em primeiro lugar, é preciso ter um diagnóstico.

Que tipo de diagnóstico?

Não só economistas liberais, mas também desenvolvimentistas não falam sobre a doença holandesa. Continuam acreditando que é possível crescer com endividamento externo. São crenças absolutamente falsas. Economistas liberais não se incomodam com o fato de o investimento público ter caído, porque não seria a função do Estado investir. É uma bobagem. O Estado deveria investir no setor de infraestrutura e em setores não competitivos. O resto, claro, deve ser feito pelo setor privado. Quando há competição, o privado é muito mais eficiente. Os liberais não se interessam pelo investimento público. Já os desenvolvimentistas antigos se interessam, gostariam de que houvesse. Mas, ao mesmo tempo, dizem que é preciso manter a demanda agregada. Adotam o que chamo de keynesianismo vulgar: promover déficit público o tempo todo, algo crônico. Além disso, mas com razão, dizem que é preciso voltar ao Estado de bem-estar social. Essa foi a grande coisa que fizemos depois da transição democrática de 1985. Realmente, passamos a investir muito mais em educação e saúde. O SUS é a grande realização da democracia brasileira instalada em 1985. Agora, isso custa caro. Ou seja, temos de financiar o Estado de bem-estar social e, ao mesmo tempo, apresentar uma poupança para financiar investimentos. Parece que nem a esquerda e nem a direita estão dispostas a fazer isso no Brasil, o que é uma tragédia. Com a covid-19, governos emitiram moeda para financiar políticas. O Brasil não usou esse financiamento monetário. Isso traz um custo muito grave para o país, porque a dívida pública, que já estava alta, vai para 100% do PIB. Então, precisamos pensar em como financiar investimentos públicos por meio do financiamento monetário, com o acompanhamento cerrado do Conselho Monetário Nacional (CMN), que só liberaria recursos desse tipo quando não houvesse claramente ameaça de inflação.

Na visão de críticos à ideia, a emissão de moeda poderia gerar alta na inflação. O senhor não vê esse risco, então?

Continuo achando que é por aí o caminho. Houve, de fato, um pequeno aumento na inflação recentemente, mas não foi causado pela emissão de moeda. Emissão de moeda não causa inflação. O que aumentou a inflação foi o auxílio emergencial no país. Cresceu a demanda por alimentos, elevando os preços. É uma inflação passageira. Não creio que tenha vindo para ficar. Nem tudo é ruim na economia brasileira.

Por quê?

O bom é que a taxa de juros, que era absolutamente escandalosa, permitindo transferência de recursos para rentistas, caiu para nível civilizado (a Selic está no menor patamar histórico do país). Isso permitiu que a taxa de câmbio se depreciasse (alta do dólar na comparação com o real), até um pouco demais. O problema todo é a sustentação disso. Até que ponto o Banco Central vai manter a taxa de juros baixa? Até que ponto a taxa de câmbio ficará competitiva? Na teoria do Novo Desenvolvimentismo, que venho elaborando, há uma ideia de que você deve manter as contas equilibradas, tanto a fiscal quanto a externa. Além disso, a teoria propõe que se administrem cinco preços macroeconômicos. O que se faz, desde a criação dos bancos centrais, é administrar a taxa de juros e a taxa de inflação. São os dois preços macroeconômicos. Agora, há outros três preços fundamentais: a taxa de salários, a taxa de câmbio e a taxa de lucro. Numa economia capitalista, o fundamental para a indústria é uma taxa de lucro satisfatória. Ora, para você ter uma taxa de lucro satisfatória, você precisa que sua taxa de salários não cresça mais do que a produtividade. Os empresários sabem disso. Tem outra coisa: a taxa de câmbio precisa estar competitiva. Se não estiver, será mais fácil importar produtos, atingindo o lucro das empresas no Brasil. É preciso que o governo realmente procure manter a taxa de juros relativamente baixa e que busque manter a taxa de câmbio competitiva.

O que é uma taxa de câmbio competitiva?

É aquela que faz as indústrias com a melhor tecnologia existente no país serem competitivas.

Analistas esperam melhora na economia brasileira em 2021, apesar das incertezas geradas pela pandemia. Qual é a avaliação do senhor para o próximo ano?

É muito preocupante o cenário para o próximo ano. É muito difícil fazer qualquer previsão. A pandemia não está resolvida, e nada indica que vai estar até o final do ano. Até termos uma vacina para todos, vai demorar. Dessa forma, o auxílio emergencial vai precisar ser retomado, não com R$ 600, mas com R$ 300. É importante. Isso representa um déficit público enorme, o que é péssimo, mas há uma questão de sobrevivência das pessoas e de manutenção da economia. Os países ricos fizeram políticas muito inteligentes, criaram subsídios para as empresas. De qualquer forma, se for mantido o auxílio, a economia se equilibra do ponto de vista macroeconômico. É claro que a dívida continuaria aumentando, e precisamos encontrar solução para isso. Temos de pensar na emissão monetária também, além de sermos responsáveis fiscalmente. Acho a responsabilidade fiscal extremamente importante. Não vejo contradição entre responsabilidade fiscal e emissão de dinheiro, quando a emissão é muito bem controlada. O Estado precisa retomar o investimento. É fundamental. Os projetos do governo para privatização são os mesmos há vários anos. Quando o setor privado não é competitivo, o Estado é melhor do que o setor privado. O setor privado é insuperável quando é controlado pelo mercado, que só funciona quando há competição, e competição da boa. Inventar competições artificiais, como no setor elétrico, não dá. Os resultados são muito ruins.

Como é possível enfrentar o problema do alto endividamento público no país?

A primeira coisa é manter a taxa de juros baixa, como no restante do mundo. Quando o país tem taxa de crescimento superior à de juro, a dívida pública vai caindo em relação ao PIB. Segundo, é preciso ter responsabilidade fiscal. Terceiro, usar com muito cuidado e controle a emissão monetária para termos investimento público. É uma coisa controlada, pequena, mas bem importante. O Brasil precisa abandonar o regime liberal e voltar a ter um Estado desenvolvimentista. Desenvolvimentista e responsável.

O senhor foi ministro nos governos de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Há algum desafio no Brasil atual que guarde semelhança com os períodos em que o senhor atuou no setor público?

Eu entrei no governo Sarney no meio de uma crise brutal, o colapso do Plano Cruzado. A inflação era de 15% ao mês. O país estava quebrado, em moratória internacional. Estados e empresas também estavam assim. Durante o ano de 1986, houve um período em que as vendas de empresas e as receitas de Estados aumentaram muito. Eles também aumentaram as despesas, aí quebraram. Peguei o governo nesse quadro, com alta inflação e crise da dívida externa. Nem uma coisa nem outra está aí hoje. O que temos é uma estagnação de longo prazo na economia. É um regime de política econômica neoliberal, em vez de desenvolvimentista. É a incapacidade de pensarmos com a própria cabeça. Agora, o desenvolvimentismo pode resolver questões se for bem governado. Se for mal governado, não resolve. Precisamos de bons governos, e nem sempre temos tido. Nos últimos 10 anos, foi um desastre.

Ou seja, o "desastre" ocorreu a partir do governo Dilma?

Do governo Dilma em diante, foi um desastre. 

LEONARDO VIECELI

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