10 DE DEZEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA
A vida, 40 anos atrás
Em Brookline, onde eu morava, vivia uma senhora de 103 anos de idade. Dona Ethel. Ela tinha uma lojinha que vendia brinquedos e bugigangas para crianças. Essa lojinha, ela e o marido montaram em 1939, quando vieram da Polônia, fugidos do horror nazista. Seus principais clientes eram os alunos da escola em que estudava o meu filho, a Devotion. Às vezes, eu entrava na lojinha da dona Ethel. Não que realmente quisesse comprar algo, era só para vê-la e passar alguns minutos naquele lugar.
Dona Ethel ficava acomodada numa cadeira ao lado da porta. Tentava não se levantar, seus 103 anos lhe pesavam nas pernas. A gente entrava e ela sorria - havia, na parede, um cartaz com uma declaração: "Eu amo os meus clientes". Parecia amar mesmo, tal a sua gentileza. Será que dona Ethel, em um século de existência, alguma vez falou mal de alguém? Duvido. Acho que o segredo de sua longevidade era a bondade.
Comprei várias quinquilharias na lojinha de dona Ethel. Não que as quisesse, era só para justificar meu ingresso na loja. Havia brinquedos antigos, iguais a muitos com os quais brinquei quando guri, como os índios e os soldadinhos do Forte Apache. Alguns brinquedos estavam empoeirados na prateleira, outros até meio danificados. Uma vez, comprei um carrinho de polícia quebrado para o meu filho. Tornou-se o seu preferido.
Sentia-me voltando docemente ao passado quando entrava na lojinha da dona Ethel. Era bom. Lá dentro, o tempo passava mais devagar. Aí eu saía da loja, atravessava a Harvard Street e me metia por uma galeria que só acredito que existe porque a conheci. É uma galeria parecida com a que há na Coronel Genuíno com a Borges, onde trabalhei por quatro anos. Era lá que ficava o Departamento de Promoção da Sulina.
A galeria de Brookline, exatamente como a de Porto Alegre, é meio escura, tem paredes e escadarias de madeira e surpresas atrás de suas vitrines. A primeira loja é de gibis. As paredes são forradas com pôsteres de super-heróis. Tinha bonequinhos de todos os personagens, dava vontade de comprar, mas o que eu ia fazer com aquilo?
Seguindo pela galeria, eu ia submergindo nos anos 1970. Uma relojoaria onde um velhinho passava o tempo inteiro consertando relógios com uma lupa presa à testa. Uma sapataria parecida com a do meu avô. Uma loja de roupas para noivas.
Saindo da galeria, dava para o cineminha com decoração restaurada, idêntica à original, de 1933, onde você pode assistir a um clássico bebendo uma taça de vinho. E, na frente, do outro lado da rua, uma sorveteria daquelas de filme, em que os jovens vão para tomar milk shake e namorar.
As pessoas imaginam os Estados Unidos como a pátria da tecnologia, acham que lá tudo é feito de plástico, tela de LED e transistores. Engano. Nas cidadezinhas da América profunda, a vida ainda é lenta e serena, as pessoas sorriem quando cruzam pelas outras, as casas são de madeira e não há cercas protegendo os jardins.
Os brasileiros muitas vezes me perguntam se sinto falta de viver nos Estados Unidos. Não é dos Estados Unidos que sinto falta. Sinto falta é de viver como se vivia 40 anos atrás.
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