sábado, 26 de dezembro de 2020


26 DE DEZEMBRO DE 2020
ELIANE MARQUES

O CONSENSO DA DESIGUALDADE

No texto que inaugurou esta coluna, escrevi que somos responsáveis pelos cadáveres prematuros, atuais e futuros, que pululam no entorno social. Porém, eu mesma considero insuficiente tal declaração de coculpabilidade. Algo soa "frase de efeito"; por isso, pretendo ir mais além, e peço que me acompanhem.

Na semana que passou, soubemos de uma trabalhadora doméstica submetida a condições análogas às de escravidão, por um escravizador, professor universitário; soubemos de um técnico de futebol que adjetivou de malandro jogador que reclamou do imperativo dirigido a ele por um colega - "Cala a boca, negro"; vimos um deputado apalpar os seios de sua colega numa sessão legislativa. Não vimos, mas alguém deve ter ouvido, outra mãe declarar que era trabalhador o filho assassinado pela polícia.

Vocês perguntarão - o que homicídios, importunação sexual, injúria racial, redução à condição análoga à de escravizada têm em comum? Partamos da frase da mãe. Entendemos que seja apenas o que lhe reste. Contudo, pergunto se estaria justificada a decisão estatal pela morte, acaso o filho não fosse o afirmado.

O "Meu filho é trabalhador", o "Cala a boca, negro", a mão que se passa pelos seios de outrem sem o seu consentimento e que faz do trabalho doméstico escravidão se enlaçam num pano de fundo consensual assentado no valor diferencial das vidas humanas como legitimação das hierarquias sociais. Não fosse esse pano, a natureza construída das hierarquias se manifestaria despida de máscaras de naturalidade.

No Diário do Hospício, Lima Barreto lembrava, não sei por qual motivo, que o guarda-civil que o esperou na porta do hospício dirigiu-se ao enfermeiro Bragança mais de uma vez chamando-o de doutor; contudo, o bragantino nunca protestara. Daqui, escrevo ao Lima lançando-lhe a hipótese de que, menos que presunçoso, o Bragança se sentia "humano" sendo nomeado doutor.

Esse consenso perpassa as classes sociais e funciona como o inconsciente freudiano que, insabido, faz sintoma no discurso intersubjetivado da disciplina e do desempenho diferencial - meu filho era diferente, por isso não mereceria morrer! Desse modo, tanto pelos incluídos como pelos de inclusão social precária, os "inadaptados" e "marginalizados" são lidos sob a lupa miúda e falsamente neutra do fracasso pessoal e da vagabundagem. Eles são "essa gente" que deverá ser presenteada no Natal quando durante o ano inteiro tenha falado baixo, vergado o lombo e se dirigido ao sujeito e à sujeita universais (homens e mulheres brancas) os nomeando dotor ou dotora, padrinho ou madrinha.

Ainda que o neguemos, fazemos parte desse consenso que começa a ser formulado desde a abolição da escravatura e que se afirma na década de 1930. Ele está no nosso corpo, com ou sem palavras burocráticas que defendam a igualdade. Nele se registra que algumas pessoas e classes participam do conceito de humanidade e outras, não, por isso podem ser assassinadas, apalpadas, injuriadas e reescravizadas.

Há um acordo implícito entre nós ancorado no desvalor de certos grupos que ainda nem mereceriam ser reconhecidos como gente. Podemos nos subtrair a esse consenso?

ELIANE MARQUES

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