quarta-feira, 23 de dezembro de 2020


23 DE DEZEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Perdidos no espaço

"Saturno devorando seu filho". Quedei-me longo tempo em frente a esse quadro de Goya, quando visitei o Museu do Prado, em Madri, na década de 90. Faz parte de uma série do artista chamada de "Pinturas Negras". É horrendo e fascinante. Saturno, o deus Cronos dos gregos, é um velho gigantesco, magro e nu, de seca cabeleira branca e olhos arregalados. Sua bocarra imensa está prestes a arrancar parte do cadáver de um de seus filhos. Mas o corpo da criança não é corpo de criança; é de um adulto pequeno.

Aquele quadro me hipnotizou, gravou-se em minha mente.

Outro artista importante, Rubens, pintou uma tela sob o mesmo tema séculos antes de Goya. A obra de Rubens também impressiona, mas a de Goya é mais assustadora e, por isso, mais admirável.

A história que inspirou os dois pintores faz parte da mitologia greco-romana. Saturno foi advertido por um oráculo de que um de seus filhos iria derrubá-lo. Para se precaver, decidiu que comeria todos logo depois do nascimento. Era o que estava fazendo, até que sua mulher, Reia, chamada "Magna Mater", a Grande Mãe, enganou-o, dando-lhe para devorar uma pedra, em vez de um nenê. Não sei como Saturno caiu nessa, mas funcionou. O menino sobreviveu, cresceu, tornou-se poderoso e, mais tarde, fez cumprir a profecia: venceu seu pai na guerra e tomou-lhe o trono. Esse menino era Júpiter, o rei dos deuses do Olimpo.

A mitologia sacra, os quadros mundanos, tudo é interessante acerca de Júpiter e Saturno, bem como os planetas que ganharam seus nomes, os dois maiores do nosso sistema solar. Eles são portentos, mas sabia que há pouco de sólido em sua composição? Li em algum lugar que, se você fosse jogado de um foguete num desses dois planetas, não se esborracharia no chão, mas afundaria na massa gasosa até o núcleo, que, aí sim, pode ser formado de metal duro, o que faria com que você virasse patê. Ou seja: melhor não se atirar em Júpiter e Saturno. Mais saudável é contemplá-los daqui, da segurança da nossa amada Terra.

Foi o que todo mundo fez na noite desta segunda-feira. Os astrônomos informaram que Júpiter e Saturno ficariam emparelhados depois de 400 anos e poderiam ser vistos a olho nu. Se você estivesse munido de uma luneta, talvez divisasse até os belos e famosos anéis de Saturno.

Pois bem. Eu e o Bernardo saímos à rua no meio da noite a fim de ver esses planetas colossais, que, como nós, são pai e filho. Estávamos entusiasmados, porque as notícias diziam que aquele ordenamento cósmico era, na verdade, a Estrela de Belém, que há dois mil e vinte anos guiou Gaspar, Baltazar e Melchior direto para a manjedoura do Menino Jesus. Mais: vídeos na internet nos garantiam de que se tratava do anúncio da Era de Aquário! Oh, quero viver na Era de Aquário. Hair! Janis Joplin! Bob Dylan! Paz e amor!

Ficamos parados na calçada, de nariz erguido, olhando para o céu, feito dois lunáticos. Mas onde estavam aqueles dois, Júpiter e Saturno? Consultamos a internet, que nos mandou olhar para Oeste. Cadê o Oeste? Lembrei do tempo em que era guarda florestal, no Parque Minuano e aprendi a identificar os pontos cardeais: o sol nasce no Leste e é para lá que você aponta seu braço direito. Às costas está o Sul; à frente, o Norte. E o Velho e Bom Oeste está sendo indicado pelo braço esquerdo. Fizemos isso, os dois de braços abertos, como Homens Vitruvianos. Olhamos para o Oeste, enfim. Mas não encontramos o grande Júpiter, nem vimos os anéis de Saturno, nem nada além de estrelas anônimas e a Lua impassível. Voltamos para casa desolados. Somos dois Reis Magos sem a Estrela de Belém. Como vamos nos guiar? Como ingressaremos na Era de Aquário? Ajude-me, sábio leitor.

DAVID COIMBRA

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