sábado, 19 de dezembro de 2020



19 DE DEZEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

O argentino que odeia a neve

Circula pelo mundo misterioso das redes um engraçado vídeo de um argentino de Santa Fé. Trata-se de uma difamação da neve. Ele se mudou para Toronto, no Canadá, em agosto, alto verão no Hemisfério Norte. O vídeo é a leitura do diário do hermano. Ele começa se dizendo aliviado por ter fugido do calor, da umidade e dos mosquitos de sua terra natal, e narra com certa emoção as belezas da vida canadense. Até que chega dezembro, cai a primeira neve e ele fica enfeitiçado pela beleza da paisagem. Mas, enquanto o longo inverno avança, ele vai se irritando com o trabalho que a neve dá: ter de limpá-la da calçada, ter de removê-la de cima do carro estacionado na rua, ter de vestir roupas quentes para se locomover. Finalmente, o argentino volta correndo para os mosquitos de Santa Fé.

É hilário o vídeo. É verdadeiro: a neve exige trabalho e infraestrutura. Mas também é injusto. A beleza da neve é tamanha, que o prazer estético que ela oferece compensa toda a atribulação.

Agora mesmo, bem sei, neva na Nova Inglaterra. Tenho recebido vídeos das ruas brancas, das pessoas sorridentes dentro de suas botas, de suas luvas, de seus gorros, ao lado de bonecos de neve.

Vivi seis invernos no norte do mundo. E o frio, embora muitas vezes tenha me impressionado, nunca me assustou - ah, eu sou gaúcho! Já a neve sempre me encantou.

Lembro de um sábado em que houve forte nevasca o dia inteiro. À noite, parou. Eu, a Marcinha e o Bernardo estávamos em casa, jantando. Do lugar à mesa em que havia me instalado, podia ver a grande porta envidraçada que se abria para a nossa sacada. A porta, obviamente, era feita de vidros duplos, para nos proteger do gelado ar exterior. Mas nunca colocamos cortina, então podíamos ver o cenário lá fora. E o que vimos nos surpreendeu. Tomei meu cálice de vinho, aproximei-me da porta e olhei: a neve branca cobria as ruas. Era tão alta, que tapava os bancos da praça ali ao lado. Os galhos nus das árvores agora estavam "vestidos de noiva", como descreve aquela bela canção gaúcha. Só que a lua imensa no céu dava outro tom ao manto de neve: a luz da lua tornou tudo amarelo-escuro, quase dourado. Foi tão bonito. Depois daquele dia, sempre que nevava eu esperava anoitecer para ver a cidade pintada da cor que Van Gogh amava.

Mas houve outra noite de neve que foi ainda mais especial. Havia passado o dia fora, no centro, e perto das 22h tomei o trem para voltar para casa. Parei a quatro ou cinco quadras de distância. Fui avançando com as minhas fiéis botas Ugly, debaixo da minha touca de esquiador. Nevava. Flocos do tamanho de moedas de um real flutuavam pelo ar e se estendiam com preguiça no chão. A neve macia se acumulava em meus ombros e batia de leve em meu rosto. 

Não sentia frio, apenas sentia a neve. Estava sozinho na rua e olhei para um parque que se encompridava à minha esquerda e para as casas iluminadas pelos abajures à direita e me deu uma alegria... Foi uma sensação de bem-estar que me tomou conta do peito, porque a neve caía e não havia ninguém por perto, eu era o único protagonista daquela história que se passava naquele momento, naquele cenário. A liberdade que me dava a minha breve solidão, o prazer do afago da neve, aquilo me encheu de uma alegria que me deu vontade de cantar. E cantei. Sozinho, na rua de uma cidade distante da minha terra natal, cantei. No escuro da noite, em meio ao branco da neve, fui muito feliz.

DAVID COIMBRA

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