quinta-feira, 17 de dezembro de 2020


17 DE DEZEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Muito mais do que uma mulher nua

Estava vasculhando a casa, procurando por um documento, e topei com ela de novo. Nem lembrava mais que a tinha, ela estava no fundo de uma gaveta, atrás de um gordo envelope de fotos: a Playboy da Tiazinha. Parei tudo. Esqueci-me de tudo. A Playboy da Tiazinha merece contemplação. Mais: merece reverência.

Muitas pessoas não entendem o que significa essa edição da revista. Trata-se de um clássico, de uma publicação histórica. Se fosse literatura, seria Dom Quixote. Se fosse cinema, seria Cidadão Kane. Se fosse música popular, seria Yesterday. Se fosse música clássica, seria a Sonata ao Luar.

Você dirá que isso é coisa de tarado, de homem que gosta de ver foto de mulher nua. Engano seu. É muito mais complexo. Revistas masculinas com fotos de mulher nua hoje não têm mais sentido, mas aquela edição em especial, A Playboy da Tiazinha, elevou-se à categoria de arte porque desvenda profundas camadas da psiquê humana.

Explico.

A princípio, parece tratar-se de apenas mais uma revista de mulher pelada. É a edição de março de 1999. Na capa, de cor dourada, a morena Tiazinha aparece de pé e de costas, mas não totalmente de costas: de ladinho. Ela usa a tradicional máscara negra, de estilo Robin, mais brincos, gargantilha, um anel e pulseiras. E nada mais. Há diamantes naqueles adereços. Há riqueza. Além dos apetrechos, ela segura uma espécie de esplendor de penas pretas que desce pela frente do seu corpo nu e lhe abraça as pernas. Chama atenção a formosura da moça, óbvio, mas, principalmente, o olhar que ela lança para a câmera do fotógrafo J.R. Duran. Aquele olhar é de promessas e de ameaças, é um olhar de convite ao prazer, mas com advertência de perigo. Chega a dar medo o olhar da Tiazinha.

Lá dentro, no interior da revista, há outras 26 páginas de fotos da Tiazinha passeando seminua pelas ruas de New Orleans, a cidade manemolente do blues.

Bem.

Até aí, nada de novo. Estamos falando de uma revista comum, voltada para o público masculino, seguindo todos os parâmetros da época, com fartura de fotos de belas mulheres, uma boa entrevista (Maílson da Nóbrega), notas curiosas etc. Mas, a folhas tantas...

A folhas tantas, se dá a mudança: a Tiazinha tira a máscara. É como se alguém tivesse torcido um botão e desligado a energia. Sem a máscara que a distinguia, a Tiazinha é tão somente uma mulher linda e nua. Desejável por sua beleza, por certo, mas sem tempero, sem malícia, sem insinuação.

Folheando outra vez a Playboy da Tiazinha lembrei-me do que senti ao ver a revista 21 anos atrás. Senti-me decepcionado. Quase que traído. Um minúsculo pedaço de pano de 20 centímetros de comprimento tornava a Tiazinha peculiar entre todas as mulheres.

Tornava-a misteriosa.

Eis o que demonstrou a clássica Playboy da Tiazinha: que o ser humano é fascinado pelo que não compreende com clareza, pelo que lhe é sugerido, porém sonegado. Por isso, cada pessoa tem de manter a salvo o seu próprio enigma. Ninguém pode se revelar totalmente. Não há nada mais sedutor do que o fruto proibido. E nada mais perigoso.

DAVID COIMBRA

Nenhum comentário: