sexta-feira, 4 de setembro de 2020



04 DE SETEMBRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Por que desanda o morrinho do mate?

O que devo fazer para o morrinho do mate não desandar?

Sei que, neste exato momento, estou me tornando motivo de chacota para meus conterrâneos. Estão debochando de mim, rindo com escárnio e repetindo com desprezo: "O morrinho dele desanda!" Precisamente por tal motivo, hesitei muito em compartilhar com o mundo exterior essa minha fraqueza. Mas chegou o desesperador momento em que não pude mais suportar mates lavados, então, tenho de pedir socorro e perguntar outra vez: o que devo fazer para o morrinho do mate não desandar?

Em minha defesa, há que se ressaltar que nem sempre foi assim. Faço mates a vida toda e meus morrinhos nunca desabavam. Ficavam orgulhosamente rijos e retos, como a moral da freira noviça. Uma época cheguei a usar pires para emparelhá-los, mas alguém me censurou por isso, disse-me que gaúcho que é gaúcho emparelha a erva com a palma da mão nua. Com o que, para me manter dentro dos limites estritos da tradição, deixei os pires para acomodar xícaras de café.

Mesmo assim, meus morrinhos permaneciam íntegros. Claro, volta e meia ocorria algum deslizamento, mas nada que mutilasse o corpo do chimarrão. Inclusive, se algum dia você acompanhou o Timeline pela GZH, viu que, quando eu morava nos Estados Unidos, fazia o programa empunhando o microfone numa mão e a cuia noutra. E, se observasse com acurácia, veria o meu morrinho intacto. Um belo morrinho.

Mas agora, não. De uns tempos para cá, meus morrinhos têm se desmanchado no segundo ou no terceiro mate, o mais tardar no quarto.

Por quê? Mudou a composição da erva do Rio Grande? Isso me aborrece profundamente.

Notem, gaúchas e gaúchos de todas as querências, que procuro seguir as regras do bom mate: a água, depois que a chaleira chia, deixo-a esfriar um pouco, para que não queime a erva. A quantidade dela, erva, que acomodo na cuia é sempre a mesma: quatro colheres de sopa cheias. A seguir, construo o morrinho com ciência de mestre de obras. Aplaino o topo e o lado que receberá a água, cuido para que tudo fique bem lisinho, como as pernas da Gisele. O passo seguinte é o derramamento da água. Faço-o com extrema doçura, esforçando-me para que a parede do morrinho não sofra erosão. Essa primeira água, não a bebo. Não. A ideia é que ela ceve a erva, intumescendo-a devagar. Então, deito a cuia na horizontal, como se estivesse estendendo a noiva no leito da primeira noite de amor. E espero.

Espero. Espero.

Quando a erva absorveu toda a água, tomo da bomba e (importante!) tapo a boca com o polegar para só depois fincá-la na base do morrinho, deixando que metade seja introduzida na parede de erva e metade fique para fora.

Voilá!

O mate está pronto para ser ingerido. É o que faço. Tomo o primeiro. O segundo. No terceiro... foi-se o morrinho. E o mate perde o gosto e o dia se torna sombrio. Por que isso está acontecendo comigo? Tenho me sentido menos gaúcho por causa dos morrinhos decaídos. Preciso consertar meus morrinhos, ou entrarei em crise de identidade.

DAVID COIMBRA

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