segunda-feira, 27 de março de 2017



27 de março de 2017 | N° 18803 
L.F. VERISSIMO

Ortodoxia


Epiphanius era o bispo de Salamis, no Chipre, e um dos principais debatedores no grande conflito que dividia o cristianismo no fim do século 4. Discutia-se a natureza de Deus e os princípios da fé cristã e procurava-se uma verdade única que definisse as doutrinas da Igreja, como a que acabou sendo sacramentada no Credo de Niceia, em 381, e repudiasse todas as heresias surgidas até então. E que eram exatamente 80, segundo Epiphanius.

O bispo, um ortodoxo ardoroso, não tinha dúvida sobre o número de heresias da sua lista e reforçava sua tese lembrando que eram 80 as concubinas citadas nos Cantares de Salomão, da Bíblia. Lá está, capítulo 6, versículo 8: “Sessenta são as rainhas e 80 as concubinas, e as virgens sem número”. Agostinho, que dizia serem 83 as heresias, não tinha um argumento parecido.

O Cântico dos Cânticos sempre foi um problema para os exegetas da Bíblia. O que faz um texto erótico no meio do livro sagrado, que tem muito sexo mas nada mais tão sensual (e tão bonito) quanto os seus versos? Uma solução foi interpretar sua linguagem amorosa como linguagem críptica e suas metáforas sexuais como metáforas religiosas. Existe até uma versão da edição do rei James com cabeçalhos explicando que o diálogo poético do texto trata do amor recíproco de Cristo e da sua igreja, sem explicar o que Cristo está fazendo no Velho Testamento.

Como tudo nos Cânticos era mensagem cifrada, Epiphanius podia interpretá-los como quisesse, e as 80 concubinas resistiram como prova da sua tese. Questões teológicas, ainda mais naqueles tempos em que a Igreja se definia, deviam ser um pouco como os debates sobre a economia, hoje: evidências valiam menos do que a fé. 

Hoje a ortodoxia monetarista e neoliberal é triunfante como a ortodoxia que Epiphanius representava no século 4, apesar dos seus fracassos, e das suas teses às vezes se parecerem muito com o aval das 80 concubinas. Quem discorda da ortodoxia dominante é tachado de herético. E o neoliberalismo sobrevive aos estragos causados pela austeridade que prega e a consequência da sua doutrinação em todo o mundo – como o crescimento do populismo – sem perder a fé.

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