24 de março de 2017 | N° 18801
CLÁUDIA LAITANO
Patrícios
Na cidade de colonização alemã onde passei parte da infância, muitas das minhas colegas falavam alemão em casa – o que dava a elas uma entonação que me divertia e fascinava ao mesmo tempo. Nascida e criada no centro de Porto Alegre, descendente de pais e avós porto-alegrenses, qualquer traço cultural mais pronunciado da nossa origem italiana parecia diluído em relação à notável presença cotidiana da cultura alemã nos hábitos e na linguagem das minhas amigas de Novo Hamburgo. Não demorou muito para eu adotar o “ach du lieber Gott!” como se tivesse nascido comigo.
A melhor festa da cidade naquela época, levando-se em conta o que eu entendia sobre festas aos oito anos de idade, não era um kerb, mas o magnífico, aos meus olhos, São João promovido na escola por professoras com sobrenomes como Schneider, Weissheimer, Snel. A festa de São João, como o Carnaval, não nasceu no Brasil, mas se aquerenciou de forma tão natural por aqui, que hoje é um dos símbolos mais reconhecidos da nossa brasilidade. (No Rio Grande do Sul, prosperou uma curiosa versão sincrética que acolhe caipiras de bombachas e gauchinhos de chapéu de palha.)
Culturas se misturam. Ainda assim, cresce nas redes sociais a discussão sobre a chamada “apropriação cultural”. Pode mulher branca usar turbante sem ofender a cultura afro? Pode negra usar colete de franjas sem desrespeitar a cultura indígena? Cheio de boas intenções (promover o respeito a culturas subjugadas por grupos sociais dominantes), esse debate sempre me pareceu ir contra o fluxo naturalmente caótico (e rico) do encontro de culturas e tradições diferentes.
Porque tudo que reconhecemos como “nosso” é resultado de misturas, adaptações, imitações. Como o São João, que nasceu pagão, virou cristão, saiu da Península Ibérica, chegou ao Brasil e acabou no pátio da minha escola em Novo Hamburgo – fazendo a alegria da alemoada que dançava quadrilha (inspiração francesa) com bombachas e vestido de prenda.
Porto Alegre começou, há alguns anos, a comemorar a festa de Saint Patrick – um santo irlandês que caiu no gosto de devotos de todos os cantos do mundo onde se apreciam bebedeiras pesadas e conversas leves. O que será dessa festa daqui a 20 ou 30 anos? Impossível prever. Como outras manifestações culturais importadas (ou inventadas), vai crescer e se reproduzir – ou murchar e desaparecer.
Tenham origem religiosa ou pagã, comercial ou histórica, tradições culturais cumprem seu ciclo de vida adaptando-se às condições mais ou menos favoráveis do ambiente. Ou seja: tudo é possível. Inclusive um porto-alegrense da gema como eu, daqui a cem anos, achar que a festa de São Patrício é a mais gaúcha que há.
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