quinta-feira, 23 de março de 2017



23 de março de 2017 | N° 18800 
DAVID COIMBRA

O frio civilizatório

“É o frio!”, dizia aquele velho anúncio das Casas Pernambucanas à entrada de cada inverno, e é o que diz também a tese do Zé Pedro Goulart acerca da principal razão de as coisas não darem certo no Brasil.

É o frio! Ou a ausência de. Segundo o Zé, fosse o Brasil um país de frios extremos, tudo funcionaria a contento.

É plausível e lógico. Em países de temperaturas muito baixas, o trem haverá de chegar na hora certa, o aquecimento não poderá quebrar, a neve terá de ser removida das ruas, caso contrário as pessoas correrão risco de, simples e definitivamente, morrer.

A necessidade, portanto, leva à eficiência. Por que o baiano há de abandonar o embalo da rede, vivendo ele em meio ao mormaço aplastante e úmido do trópico, ouvindo o sonolento ronronar das ondas de Itapuã, sabendo que, perto dele, o coqueiro dá coco e do mar se colhe o peixe?

O calor se presta ao usufruto dos dias. O frio, à frenética produção. Donde, tudo há de ser preciso onde faz muito frio.

Certo. Bem pensado. Mas e a Rússia?

Na Rússia faz tanto frio, que torna o interior da sua geladeira mais aconchegante do que a rua. No inverno, Moscou registra, sem sobressaltos, 45 graus abaixo de zero. Os exércitos de Hitler e Napoleão foram derrotados pelo General Inverno quando ousaram invadir aquelas terras geladas.

Na Rússia, portanto, faz muito frio. E a Rússia é um Brasil.

Conheço russos, e um deles, certo dia, disse-me que na Rússia muitas coisas também são resolvidas com jeitinho. Na Rússia, os serviços públicos são precários. Na Rússia, o sistema capitalista adotado não é capitalista de verdade, é o capitalismo patrimonialista, de compadrio, no qual o capitalista não assume riscos.

Na Rússia, as mulheres são belas.

Tudo isso temos em comum com os russos. A vantagem deles, certamente, é a literatura. A nossa, a música. E a democracia. Os russos jamais experimentaram um regime democrático legítimo. Ou foram oprimidos pelos czares, ou pela Nomenklatura comunista, ou por Putin, o envenenador.

Assim, a tese do Zé Pedro de que o frio extremo produz civilização cai pelas estepes congeladas e rola Sibéria abaixo.

Alguém poderá achar que se trata de um desalento para o Brasil. Ou seja: nem o frio nos salvaria.

Ao contrário, é um alento. Porque significa que podemos vencer a geografia. Se a Rússia é exceção climático-político-administrativa, por que nós não poderíamos ser também, só que pelo lado positivo? Um país quente que funciona.

Acredito nisso. Acredito que o Brasil possa evoluir, e já estamos caminhando nessa direção. No Brasil de hoje, os poderosos também são punidos. Gente com muito dinheiro e muito poder, tendo errado, está indo para a cadeia. Outros irão. É uma base sólida de nação, sim. Por demonstrar, na prática, que ninguém é diferente diante da lei. Estamos nos distanciando da Rússia. E o melhor: com temperaturas amenas e mulheres lindas.

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