contardo calligaris
02/03/2017 02h13
Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.
Conselho aos jovens médicos
O conselho vale também para os médicos menos jovens, os estudantes de medicina e os secundaristas que pensam em se tornar médicos. Na verdade, o conselho se estende a todos os que são ou serão pacientes, mesmo que não tenham a ambição de ser ou vir a ser médicos.
Já tinha assistido ao filme "A Garota Desconhecida", dos irmãos Dardenne, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Fui de novo no sábado passado e gostei tanto quanto da primeira vez. Não percam –e se apressem: em São Paulo, por exemplo, o filme está em apenas dois cinemas.
Admito, sou duplamente parcial: pelos irmãos Dardenne, que praticam um naturalismo sem violinos (na verdade, sem trilha musical alguma), representando um mundo no qual me sinto absolutamente em casa (o mesmo valia para filmes anteriores deles, por exemplo "Dois Dias, Uma Noite" ou "O Garoto de Bicicleta"); e sou parcial pela protagonista da "A Garota Desconhecida", que gostaria de encontrar na vida real –cuidado, falo da protagonista, não da atriz (ótima Adèle Haenel, aliás), a não ser que ela seja igual à protagonista.
Reconheço várias razões pelas quais amo a jovem médica Jenny Davin: porque não usa maquiagem e seca o cabelo com uma toalha; porque vive de jeans e dois moletons meio surrados; porque come o que tiver ou o que sobrar. O que é, ela não se importa consigo mesma? Não, é que ela tem mais o que fazer.
Continuo: porque ela só usa luvas descartáveis quando precisa proteger a queimadura infeccionada de um paciente, e não para auscultar nem mesmo para trocar o curativo no pé de um idoso diabético; porque fala pouco e sabe escutar; porque acorda de madrugada para atender a campainha sem nem sequer uma expressão de revolta; porque ela não tem preocupação de status; porque, enfim, ela traça sua vida (e sua carreira) a partir do que lhe parece ser sua responsabilidade.
E, cuidado: a responsabilidade que ela sente não tem nada a ver com a empatia ou a compaixão por "coitados" e deserdados. Ao contrário, Davin sabe (e diz ao seu estagiário) que os sentimentos só atrapalham a arte do diagnóstico. A responsabilidade que ela sente é quase um efeito lógico evidente (que não precisa de justificativa) da demanda que ela ouve.
Talvez (nossa) responsabilidade seja mesmo engajada automaticamente quando alguém pede ajuda. Isso não valeria só para os profissionais da saúde. E certamente vai além da resposta curta e fácil ao pedido de esmola.
Alguém se aproxima e fala comigo no farol? Tento escutar. Em geral, a mentira de quem pede me libera da responsabilidade. Precisa do dinheiro para uma passagem para Itu, onde a mãe etc., e eu não acredito? Posso fechar o vidro.
Agora, se você acredita na história que está ouvindo, estacione, desça do carro e aja mesmo. Há uma recompensa, já neste mundo: aceitar a responsabilidade da gente é quase sempre interessante.
Tento viver como Jenny Davin. Não é difícil, porque, em geral, gosto das pessoas, ainda mais quando têm vidas muito diferentes da minha. Mesmo assim, nem sempre consigo, mas Carlo Antonini, protagonista dos meus romances e do seriado "Psi" (HBO, chega agora à sua terceira temporada), vive por essa regra.
Agora, além da própria Jenny, há outras coisas, na Bélgica onde ela vive, que poderiam nos inspirar. Por que nosso sistema público de saúde não contempla um generalista de referência, que centralizaria o histórico médico de seus pacientes?
Quem teve a ideia de abolir as visitas domiciliares, mesmo noturnas, e de deixar, portanto, os pacientes correrem para entrar na fila de espera de um pronto-socorro (muito mais caro), em todos os casos de supostas "urgências"? Quem tirou desse médico (que sumiu) a autoridade para exigir, com um simples telefonema, que qualquer administração pública dispense a presença de um paciente que não pode se deslocar?
Jenny é o que a Europa tem de melhor, hoje. Não o assistencialismo, mas a presença efetiva de uma comunidade minimamente atenta –sem ideologismos, sem manhas sentimentais, por valores que nem é preciso mencionar.
A Bélgica é cinza. Mas, para dar dignidade à vida da gente, não é preciso de sol –nem de conforto ou de privilégio.
Nota: "A Garota Desconhecida" talvez seja o melhor filme que já vi sobre o que é ser médico –muito além de "Grey's Anatomy", "ER" e "House" combinados.
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