sábado, 18 de março de 2017



18 de março de 2017 | N° 18796 
DAVID COIMBRA


Como se chamava o porta-sacos de leite?

Caminhava pelas ruas de Brookline e, na frente de uma casa de madeira, vi algo que me comoveu.

Brookline, há que esclarecer, é um modelo de cidade típico da Nova Inglaterra. Eles chamam de “town”. Em geral, trata-se de uma cidade pequena, que não tem prefeito; é um conselho que a administra.

Brookline fica engastada no meio de Boston, como se fosse uma ilha. Conta com sua polícia e seu sistema de educação próprios. É considerada uma comunidade progressista e, ao mesmo tempo, tradicional. Teria de ser em um lugar como Brookline que veria o que vi: uma garrafa de leite em frente à porta da casa.

Em Porto Alegre era assim, nas priscas eras da minha primeira infância. Havia a instituição do leiteiro. O homem passava pela sua rua de manhã bem cedo em uma Kombi, ou mesmo em uma carroça, e deixava a garrafa de leite sobre o capacho, ao lado do jornal. Logo em seguida, chegava o padeiro e acrescentava ao conjunto o semolina de meio quilo. O cidadão acordava, estremunhado, e a primeira coisa que fazia era se arrastar até a porta para colher do chão esses itens fundamentais para o café da manhã.

Às vezes, com a porta entreaberta, o sujeito via o morador da casa do outro lado da rua também colhendo o café do alpendre, e cumprimentava:

– Bom dia, vizinho! – Dia!

Eu ainda era pequeno quando o leiteiro sumiu e leite deixou de vir engarrafado. A nova embalagem, agora, era vendida no armazém do bairro em um saquinho plástico parecido com um pequeno travesseiro.

Certo dia, a minha mãe mandou que fosse à venda a fim de comprar pão e leite para o café da tarde (tomava-se café da tarde). Fui e voltei com aquele curioso saquinho pendurado por uma das orelhas. Era novidade para mim.

Resolvi abri-lo.

Deitei o saquinho na mesa da cozinha, imaginando-a uma pedra sacrificial. Tomei da faca de ponta mais afiada da gaveta dos talheres. E então, sentindo-me um sacerdote asteca fazendo oferenda à Serpente Emplumada, empunhei a faca com as duas mãos e levantei-a bem alto, acima da cabeça.

Em seguida, emitindo um urro selvagem e primevo, desci-a no meio da barriga do saquinho, BLOFT! O sangue da vítima, quer dizer, o leite espalhou-se por toda a cozinha, pela minha cara, pelo mundo. Minha mãe, demonstrando sua total insensibilidade aos rituais da Mesoamérica, ficou furiosa comigo e me botou no castigo.

Aqueles saquinhos de leite não eram muito práticos mesmo. Para usá-los, o consumidor necessitava de outro instrumento, que era o porta-saco de leite, espécie de caneca de plástico que acomodava o saquinho, permitindo que o leite fosse servido e guardado com facilidade. Como será que se chamava aquele troço?

O fato é que, depois que descobriram que leite em caixinha era muito mais inteligente, todas as fábricas de porta-saco de leite fecharam e homens que dedicaram suas vidas inteiras a desenhar porta-sacos de leite e a produzir os melhores porta-sacos de leite, homens que sustentavam suas famílias graças ao porta-sacos de leite, que se orgulhavam dos porta-sacos de leite que faziam, esses homens acabaram desempregados e ao relento e ainda hoje devem suspirar de saudade do porta-sacos de leite.

Eu, não. Eu odiava o leite em saquinho e o maldito porta-sacos de leite. Sempre preferi o leite em garrafa, sobretudo quando era deixado em frente à porta da nossa casa, quando a nossa casa ficava com a portinhola da cerca aberta para o leiteiro entrar, quando o leite, o pão e o jornal não seriam roubados de cima dos nossos capachos e, principalmente, quando o leite não era vendido adulterado, a carne não era vendida apodrecida, a água não tinha gosto ou cheiro e as verduras não estavam envenenadas de agrotóxicos.

Por isso, a visão daquela garrafa esperando placidamente diante de uma porta em Brookline me emocionou. Suspirei, nostálgico como um antigo fabricante de porta-sacos de leite. E me afastei pensando: um velho mundo é possível.

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