sábado, 4 de março de 2017



04 de março de 2017 | N° 18784
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

POR MOTIVO DE FORÇA MAIOR

Como quase todo mundo, eu odeio dar notícia ruim. E naquele momento nada machucaria tanto quanto a verdade completa. Os exames que trazia revelavam mais um encaminhamento tardio de uma doença cuja evolução se conta em anos e que, lamentavelmente, por falta de cultura médica, segue sendo encaminhada para o transplante somente na reta final de uma longa via crucis.

Como se pode supor, não se faz transplante preventivo, mas cada uma das várias doenças pulmonares que têm transplante no horizonte seguem protocolos de inclusão em lista de espera a partir do momento em que o risco de morte pela enfermidade de base é maior do que o risco do próprio transplante. A experiência permitiu estabelecer quanto tempo em média sobreviverá um paciente a partir de determinada reserva funcional detectada pelos métodos específicos. Pois esses parâmetros, no Bernardo, eram péssimos. Com um enfisema severo e uma capacidade respiratória abaixo de 15% do previsto, a única coisa que animava era o brilho do olho. Intenso, estimulante, transbordando de vontade de seguir por aqui. E só.

Nas primeiras entrevistas não ficou clara a motivação, afinal, nunca tivera um emprego que revelasse paixão por fazer alguma coisa especial, e a família, que só foi recrutada pela insistência da assistente social, comentava a situação com ar de enfaro. A avaliação multidisciplinar concluiu tratar-se de um solitário, pobre, sem ambições aparentes, trazido por uma sobrinha que conhecia um transplantado de pulmão de quem ouvira maravilhas. 

Quando começou o programa de fisioterapia com vistas à reabilitação pulmonar, sua aderência ao tratamento proposto era uma incógnita. A péssima condição basal, o atraso no encaminhamento, a longa lista de espera, a falta de ritmo nas doações, a dependência de doses crescentes de oxigênio, o emagrecimento difícil de manejar e as madrugadas arfando nas janelas da enfermaria o colocavam como grande candidato a compor a triste cifra de 30% de pacientes que ainda morrem esperando um órgão que nunca chega, porque alguma família que podia ter doado nunca pensara no assunto nem tinha ideia que ele existisse.

Toda crise que o levava para a UTI tinha cara de última, mas ele sempre dava um jeito de se safar. Um dia, o encontrei saindo da terapia intensiva e, antes que lhe dissesse qualquer coisa, ele levantou o polegar e anunciou orgulhoso: “Ainda não foi desta vez!”.

Passados quase dois anos e meio, contrariando todos os critérios de previsão de expectativa de vida, o Bernardo continuava vivo e entrou no Centro de Transplantes, ofegando mas sorridente, numa madrugada fria do último inverno da virada do século.

Dias depois, na visita da manhã, parecia bem feliz. De barba feita e respiração serena, deixava que a atendente lhe penteasse a cabeleira grisalha. Quando quis saber como se sentia sendo paparicado por uma mulher bonita, ele avisou: “Uma pena que já estou comprometido”.

No dia da alta, quis saber de onde tirara a energia que lhe permitira quebrar todos os recordes de sobrevivência, e ele resumiu: “Ninguém sabe ainda, mas a Ana Maria me prometeu que, enquanto eu vivesse, ela esperaria por mim”.

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