sábado, 18 de março de 2017



18 de março de 2017 | N° 18796 
L.F. VERISSIMO

Histórias

Ele contou na roda que tinha sido preso por questões políticas mas não tinha sido torturado. Pelo menos não fisicamente. Ninguém lhe tocara um dedo.

Mas o colocaram numa cela com um homem enorme, que tinha mais de peito do que ele de altura. O nome do homem, e a razão para ele estar preso, nunca ficara sabendo. Só lhe disseram que o apelido do homem era Animal. E que ele gostava de ouvir histórias.

Histórias? É. O Animal gostava de histórias. Ele deveria contar histórias ao Animal e só parar quando o Animal dissesse “Pare”. Se parasse antes, ó...

E lhe mostraram o que o Animal faria com o seu crânio, apertando-o entre suas mãos. Se parasse de contar histórias por mais de um minuto, seu crânio viraria um tomate entre as mãos gigantescas do Animal.

Mas que tipo de histórias deveria contar ao Animal? Se vire, disseram. E o trancaram na cela com o Animal. Ele ensaiou um bom-dia. O Animal quieto. Ele disse seu nome, esticou a mão para apertar a mão do Animal. O Animal imóvel. Olhando fixo para um ponto na sua testa. Talvez, pensou ele, calculando a pressão que precisaria para esmagar sua cabeça. Quando o Animal deu um passo na sua direção, ele disse, rápido:

– Era uma vez... O Animal recuou e sentou-se no seu catre para ouvir a história. Ele continuou, tentando desesperadamente improvisar uma narrativa:

– ... uma princesa que morava num castelo. Um dia, um passarinho chegou na janela da princesa e...

Seria aquele o tipo de história de que o Animal gostava? A cara impassível do Animal não lhe dizia nada. Só o que mudara era que ele agora olhava para a boca do outro, em vez de um ponto na sua testa. O narrador continuou improvisando. Durante muitas horas, contou sua história, tentando adivinhar o que agradava e não agradava ao Animal. Mais romance ou mais ação? Mais ou menos sangue? O Animal não fazia um som.

Entrou de tudo na história. Príncipe. Madrasta. Lobo. Sapo. Dragão. Anão. Vovozinha. Várias vezes o narrador sugeriu que a história tinha terminado.

– E viveram felizes para sempre...

Mas o Animal não dizia nada. E ele, apavorado, emendava outra história.

– Enquanto isso, em outro castelo, longe dali... Contou todas as histórias de fada que conhecia e inventou mais algumas.

Quando não sabia o que mais inventar, começou a contar filmes, romances, todos os enredos de que conseguia se lembrar. O dia raiou e o Animal continuava olhando para a sua boca, sem dizer uma palavra. Ele espremia a própria cabeça, metaforicamente, para se lembrar de mais histórias. Já esgotara todos os enredos possíveis. Recorrera à Bíblia, às Mil e uma Noites, a Dom Quixote, a Homero, a Janete Clair.

Começou a recontar histórias, variando alguns detalhes para o Animal não desconfiar. Na nova versão, a vovozinha comia o lobo. Misturou histórias. Sinbad e Peter Pan contra invasores de Marte. Pinóquio, o Rei Arthur e o Capitão Nemo juntando-se aos Três Mosqueteiros nas estepes numa emboscada para o mensageiro do Tzar... Os dias passavam e o Animal não desgrudava os olhos da sua boca. E ele não tinha mais voz!

Decidiu contar histórias com mais conteúdo psicológico do que ação, para ver se o Animal se aborrecia e dizia “Pare”. Ou se dormia. Mas o Animal nem piscava. Finalmente, ele se atirou contra as grades e gritou – ou sussurrou, com a pouca voz que lhe sobrava – que não aguentava mais, que o tirassem dali, que confessaria tudo. Confessaria o que quisessem!

E ele contou que mais tarde, depois que o soltaram, encontrara alguém que estivera preso na mesma época e este lhe perguntara: – Também botaram você na cela com o surdo-mudo?

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