02 de março de 2017 | N° 18782
L.F. VERISSIMO
Outra carta da Dorinha
Recebo outra carta da ravissante Dora Avante. Dorinha, como se sabe, é figura obrigatória no Carnaval carioca desde que ele se chamava “tríduo momesco” e o tríduo durava uma semana. Foi Dorinha a primeira a usar um tapa-sexo cravejado no baile do Municipal, na sua fantasia de Catarina da Rússia na Intimidade, embora diga que ainda não era nascida na ocasião. Dorinha andava sumida. Não passara tanto tempo sem dar notícia desde o episódio, nunca bem explicado, do seu desaparecimento na Sierra Maestra, que culminou com sua entrada triunfal em Havana abraçada ao Fidel porque ele jurou que era social-democrata.
Seu grupo de pressão e carteado, as Socialaites Socialistas, que luta pela implantação no Brasil do socialismo soviético na sua fase mais avançada, que é a volta ao feudalismo, e que ela chama de sua “ONG soit qui mal y pense”, estava preocupado. Dorinha reapareceria para o Carnaval? Agora temos a resposta. Não, a Sapucaí não viu o umbigo convexo (“tudo em mim é para a frente”) da Dorinha neste ano. Ela está recolhida e... Mas deixemos que ela mesma nos conte. Desta vez, sua carta não veio escrita com tinta lilás em papel turquesa timbrado como sempre, veio escrita a lápis nas costas do envelope. São tempos difíceis para Dora Avante.
“Caríssimo! Beijos secos, porque estou sem liquidez. Sim, sou eu, ou um fac-símile razoável. Desconfio que na minha última plástica se foi o que ainda restava do original. Hoje o que há de mais autêntico em mim é o botox. Mas o coração é o mesmo. Só vou aceitar um artificial quando for feito pelo Pierre Cardin. Como você sabe, até minhas bolsas de água quente são da Vuitton. No momento, estou na cama com enxaqueca.
Não, bandalho, não é o apelido de uma “gamine” do Baixo Leblon. Nunca abandonei a ideia de que transar com o mesmo sexo é como treinar contra o time B. Só recorrerei a isso quando não houver mais homens no mundo, provavelmente na semana que vem. A minha é uma enxaqueca moral, causada pela falta de dinheiro. Estou entre maridos, e o último, cujo nome me escapa no momento, levou com ele o que pode haver de mais sagrado num casamento, o cartão de crédito conjunto.
Você acredita que quem está sustentando a casa é minha empregada, a Dorileide? Ela sempre guardou o que roubou de mim entre o Bradesco e o Itaú, que é como chama os seus dois peitos, e é de lá que tem saído o dinheiro para o súper. Mas se recusou a financiar minha fantasia para sair na Mangueira! Como é odioso o preconceito de classe. Ficarei em retiro em casa e aproveitarei para escrever minhas memórias. Falarei dos escritores que me perseguiam como se eu fosse uma vaga na Academia, dos poetas que beijavam meus pés e dos que eu deixei chegar mais longe, dos escultores que queriam ver meu busto em praça pública e eu dizia ‘Não, pode vir alguém...’. Nunca repeti um amante. Seria como chupar duas vezes a mesma laranja.
Tive maridos de todas as correntes políticas, tanto que quando os descrevo é sempre “da esquerda para a direita”. Houve o ex-militar (um duro, mas não onde interessava), um ex-guerrilheiro marxista, hoje dono da butique Pum-Pum! em Ipanema... E lembrarei todos os políticos que estiveram em meus braços, mesmo – como no caso do Magalhães Pinto – só porque tropeçaram e tive que segurá-los. Contarei tudo. As instituições da República talvez sobrevivam à Lava-Jato, mas não sobreviverão à minha enxaqueca. Da tua pobre Dorinha”.
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