quarta-feira, 1 de março de 2017



01 de março de 2017 | N° 18781 
MARTHA MEDEIROS

Um pedaço de papel

As festas de entrega do Oscar são cronometradas por softwares avançados. Efeitos especiais já foram utilizados durante as cerimônias para mostrar atores conversando ao vivo com personagens de animação. A tecnologia é aliada do cinema. No entanto, foi um pedaço de papel o causador do mico histórico no último domingo. O analógico deu uma rasteira na fantasia de Hollywood.

Logo após terminar o seu discurso de agradecimento, o produtor de La La Land, Jordan Horowitz, informado sobre o engano, viu-se na difícil tarefa de dirigir-se a seu concorrente e fazer justiça: “Moonlight é o melhor filme do ano. Não é piada”. E então a equipe do alegre musical desceu do palco arrasada e a equipe do drama subiu ao palco sorrindo, numa irônica troca de posições. Sim, foi uma gafe, um papelão, mas não chego a lamentar a falha que humaniza todo script ensaiado.

Justamente quando nada pode dar errado é que o errado subverte as expectativas e desmonta a farsa da perfeição, lembrando que, afinal, a vida é assim mesmo, nem tudo funciona. Claro que, para a indústria cinematográfica, não é tão simples: o filme vencedor fatura milhões, alavanca carreiras, estabelece parcerias comerciais. Mas, para nós, é apenas mais um filme que ganhará um homenzinho dourado no cartaz. Aqueles 10 minutos de improviso é que entrarão para a história.

De repente, ninguém mais tinha texto decorado e o teleprompter não servia pra nada. A orquestra ficou sem ter o que tocar. Um produtor que já havia agradecido à mãe, à esposa, ao pai, aos filhos e ao Espírito Santo foi do céu ao inferno em segundos. Ryan Gosling, com seu ar blasé providencial, não devia estar feliz desde que viu Casey Affleck papar a estatueta de melhor ator. Pois a confusão o favoreceu: sua perda deixou de ser individual para se tornar coletiva. 

Warren Beatty ganhou um protagonismo inesperado, apesar de não ter culpa pela troca de envelopes. Seu vacilo foi não ter dito “tem algo estranho acontecendo aqui” quando percebeu a encrenca. Em vez disso, passou a batata quente pra Faye Dunaway, que fez o que toda mulher faz quando vê um homem enrolando: “Deixa que eu resolvo”. Mal vislumbrou um “La” em letras miúdas e secundárias, bradou ao microfone, confiante, o nome inteiro do filme. Cyborg, que tinha visão supersônica, não seria tão rápido.

Algum problema? Nenhum, apenas pessoas fazendo o que fazem todo dia: se virando. Para os organizadores e auditores do Oscar, foi um vexame planetário, mas para nós, espectadores, compensou. A mais importante noite do cinema, com um enredo que todo ano se repete, desta vez caprichou naquilo que realmente nos empolga: ofertou um final imprevisível.

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