10 de março de 2017 | N° 18789
NÍLSON SOUZA
A AGENDA DO CORAÇÃO
Minha mãe, que tem 93 anos, guarda na memória o número do telefone fixo de todos os membros da nossa família – uma família enorme, só ela teve 15 irmãos, o que multiplicado por filhos, netos e bisnetos deve dar centenas de pessoas. Evidentemente, a garotada não tem telefone fixo, o que reduz a lista para os, digamos, mais idosos, incluindo- se aí alguns que já não estão mais entre nós. Ainda assim, é bastante gente. Na sua companhia, nunca se precisa consultar a agenda do celular:
– Mãe, qual é o telefone do tio Fulano?
E lá vem ela, orgulhosa, com os números certos. Ela também decora versos, alguns de sua própria lavra, e sabe de cor e salteadas todas as orações do repositório católico – suspeito que algumas também de sua própria lavra. Não herdei essa competência.
Minha memória mais afiada se limita a coisas que efetivamente utilizo no dia a dia do meu ofício, a colocação correta de pronomes, a grafia das palavras, as informações básicas para construir um texto. Não sou bom sequer para fixar o nome das pessoas. Já me vi em situação constrangedora algumas vezes por causa disso, até que adotei a estratégia da sinceridade com aqueles “conhecidos” que costumam nos cumprimentar efusivamente na hora do vazio cerebral.
– Peço desculpas, mas não estou me lembrando de ti.
A barba branca funciona como salvo- conduto para o momentâneo esquecimento. Às vezes, porém, arrisco. Outro dia, num shopping, encontrei um amigo de longa data e o tratei pelo nome de outro. O cara quase me empurrou escada rolante abaixo.
Sei que existem mil exercícios para turbinar a memória, melhorar a atenção e a concentração, mas nunca me interessei muito por isso. Aliás, os especialistas dizem que o interesse é fundamental para a gente não esquecer. Se você é apresentando a uma pessoa, mas não tem muito interesse por ela, dificilmente reterá seu nome no espaço do cérebro reservado para memórias de longo prazo. Daí ao esquecimento total é um passo.
Aí talvez esteja a explicação para o catálogo telefônico na cabeça de dona Terezinha. Ela se lembra dos telefones dos parentes, dos versos e das orações porque essas lembranças estão recheadas de afeto. Guarda-os não no cérebro, mas na agenda do coração.
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