04 de março de 2017 | N° 18784
L.F.VERISSIMO
Sonhos
As pessoas são mais inteligentes dormindo do que acordadas. Todas sonham, mesmo que não se lembrem depois, e seus sonhos são sofisticadas narrativas cifradas, de grande complexidade temática e riqueza simbólica. Meninos de rua sonham como Borges, engenheiros são surrealistas oníricos, debutantes vazias levam a arte da elipse visual a extremos de criatividade, quando dormem.
O sonho não é apenas um grande nivelador intelectual – qualquer cerzideira escreveria como a Clarice Lispector se apenas pudesse botar a trama dos seus sonhos num papel –, também é o grande apagador de fronteiras: os sonhos da Rita Cadilac e do arcebispo estão plugados no mesmo provedor de signos, disfarces, desejos e medos, o mesmo roteirista maluco, de todo o mundo. Os sonhos só não são a linguagem comum da espécie porque ainda não se chegou a um vocabulário comum para entendê-los. As mensagens são as mesmas para todos nós, variam as interpretações.
Só posso especular, por exemplo, sobre o significado de um sonho que tive há tempos, sobre o que o sonho estava querendo me dizer. Enquanto eu sonhava, sua mensagem era claríssima. Quando acordei, não entendi mais nada. Eu estava no meio do mar, mexendo braços e pernas para me manter à tona. De acordo com a ortodoxia freudiana, sonhar com água tem alguma coisa a ver com sexo. Pensando bem, para a ortodoxia freudiana tudo tem alguma coisa a ver com sexo, água é só o mais óbvio.
Mas já estou naquela idade em que nem a ortodoxia freudiana funciona mais. Interpretei minha situação como a continuação, no mundo cifrado, do pensamento sobre a condição humana que começara antes de dormir. Isto raramente funciona, como você sabe. Pouco adianta pensar com força na Patricia Pillar antes de dormir, ela não aparecerá no seu sonho. Pode aparecer um símbolo da Patricia Pillar, mas isso você só saberá depois, na interpretação (aquele pássaro – era ela!), quando for tarde demais. Deduzi que o Oceano Atlântico era o Tempo e eu, modestamente, era a Humanidade.
A distância entre a superfície do mar e o fundo simbolizava o tempo transcorrido desde a criação do mundo, eu representava o tempo da nossa existência no planeta. Contando todas as nossas formas pré-históricas desde o primeiro hominídeo, somos uma espécie recentíssima. E mesmo na síntese histórica do meu corpo agitado, só a porção da testa para cima representava o homem agrícola-pastoril-industrial que começamos a ser anteontem, em termos relativos.
Durante a maior parte, quase noventa por cento, do nosso passado como gente, fomos caçadores-catadores. Ainda temos os dentes caninos, e uma vaga inquietude de nômades, para nos lembrar desse tempo. Dizem até que éramos melhores então: comíamos mais proteínas e tínhamos uma dieta mais variada antes de descobrir a agricultura – e fazíamos mais exercício, mesmo fugindo de mamutes. Com a agricultura e a domesticação de animais, vieram as monoculturas, o sedentarismo e os primeiros grupos humanos a conviver com dejetos, os seus e os dos seus bichos. Nasciam, ao mesmo tempo, a civilização e a falta de higiene.
Qual era, então, o meu significado, na superfície daquele oceano, a quilômetros do seu fundo e da origem da vida? Acho que eu era um símbolo da megalomania humana, da nossa absurda pretensão de que 10 mil anos de existência ereta nos dão um significado maior do que o da libélula, que vive só um dia. Em comparação com o tempo transcorrido desde que a primeira ameba se dividiu no miasma borbulhante, a espécie humana também viveu só um dia.
E uma noite, para sonhar com ele. Me debatendo no meio do oceano simbólico, eu não passava de um mosquito na superfície de um caldeirão de melado, convencido de que toda aquela doçura era em seu louvor. A síntese do meu sonho, então, era esta: não passamos de mosquitos pretensiosos.
Mas aí veio uma barcaça embandeirada com a Cleópatra e o Dom Pedro II abraçados na popa, enquanto alguém na proa gritava na minha direção: “Deleta! Deleta!”, e tudo ficou misterioso outra vez.
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