07 de novembro de 2014 |
N° 17976
DAVID COIMBRA
Alguém cuida de mim
Você pode ver guris de 14 anos de
idade dirigindo pelas ruas de Boston, desde que cumpram certas condições, como
estar acompanhados dos pais. Aos 16, meninos imberbes vão e voltam da escola
conduzindo seus próprios automóveis, embora estejam proibidos de guiar depois
do anoitecer. Aos 18, aí, sim, eles ganham a licença completa.
Mas só podem beber aos 21, e
nunca à direção. Estou me referindo a bebidas com álcool, evidentemente. Cabe a
ressalva, porque, outro dia, comentei que bebida em excesso faz mal e meu filho
disse que aquela informação o inquietava: ele havia bebido muito suco de
laranja no almoço.
Como você é mais esperto do que
um menino de sete anos, deve ter adivinhado que estou escrevendo sobre a noção
de maioridade nessa esquina dos Estados Unidos onde vivo. Eles se preocupam
muito com suas crianças, os americanos.
Se elas precisam, o Estado lhes
dá não só educação gratuita, como assistência médica e alimentação. E os pais
chegam a mudar de bairro ou até de cidade para que os filhos frequentem as
melhores escolas. Mas, quando os rebentos atingem os 18 anos, espera-se que se
virem por conta própria. Eles mesmos, os adolescentes, quando alguém pergunta
se ainda moram com os pais, eles ficam constrangidos, juram que é temporário,
que já estão saindo, não vai demorar.
Não temos de copiar os
americanos, eles são eles, nós somos nós, mas há algo interessante nessa
fórmula: é a ideia de que o investimento majoritário dos pais e do país em um
indivíduo tem de ocorrer até que ele complete sua formação. Depois, ele
supostamente saberá cuidar de si mesmo.
Ocorre que o Estado brasileiro
olha muito para as universidades e pouco para o ensino básico e fundamental, e
é ali, no ensino básico e fundamental, que se forma o cidadão. Se o Estado se
concentrasse nas crianças, as correções de rumo que hoje são feitas pelas ações
afirmativas seriam desnecessárias. O Estado tem de assegurar que uma pessoa
chegue aos 18 anos de idade com boa saúde e com nível de instrução que a
capacite a concorrer com quaisquer outros, de quaisquer classes sociais. Feito
isso, já está muito bem feito.
Nós, os adultos, nós tínhamos de
ser esquecidos pelo Estado. Os recursos e as energias deviam ser derramados
sobre crianças e velhos. Nós? Azar o nosso.
O paternalismo histórico possuiu
a nossa alma brasileira como um espírito do Mal. Semana passada, escrevi que o
ditador Getúlio Vargas foi o pior presidente da história do Brasil. Muitos
leitores se ofenderam e lembraram as “realizações” de Vargas. Uma tristeza.
Tais realizações deveriam ser consideradas conquistas da sociedade, não favores
de um herói dos pobres.
Em verdade, vos digo: se um
ditador andar sobre as águas e, com o toque da sola de seus pés sagrados,
transformá-las em vinho, ainda assim será um canalha. Todos os ditadores são
canalhas.
Mas, não, o Bolsa Família não é
uma distorção do paternalismo. O Bolsa Família é um necessário programa
corretivo de desigualdades. Distorção do paternalismo foi demonstrada nas
alegações do chamado “eleitor esclarecido” do PT para votar pela reeleição da
presidente. Esse eleitor reconhece a caudalosa corrupção no governo, só que ele
aceita todos os desvios, desde que haja uma suposta ajuda aos pobres. Como pode
o eleitor esclarecido não perceber que a corrupção não ajuda ninguém, a não ser
o corrupto?
O raciocínio, apesar de ser uma
redução grosseira, é quase irresistível: para salvar o pobre, o Grande Pai faz
alianças espúrias, mas necessárias à “governabilidade”; o Grande Pai classifica
a corrupção como um defeito congênito da política nacional, alegando que todos
são iguais a ele nos defeitos; o Grande Pai trata a democracia representativa
como uma formalidade um pouco incômoda, que o impede de exercer toda a sua
benevolência. E nós acreditamos, claro que acreditamos. É tão confortável pensar
que alguém lá em cima zela por nós...
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