quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012



29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
MARTHA MEDEIROS


Pai com certificado

A primeira vez que escutei sobre a importância do nome do pai no registro de nascimento foi no ano passado, durante uma entrevista do empresário Luiz Fernando Oderich, fundador da ONG Brasil Sem Grades, que luta brava e insistentemente para diminuir a criminalidade atual.

Sou admiradora desse cidadão que, a exemplo de outros homens e mulheres que perderam seus filhos de forma estúpida (o filho único de Luiz Fernando foi morto há 10 anos durante um assalto), dedicam grande parte de suas vidas a dignificar a sociedade em que vivemos. É com gratidão e respeito que o menciono.

Agora, o Fantástico inicia uma série em que bate na mesma tecla, a da importância do nome do pai na certidão, citando projetos semelhantes, como o Pai Presente e o Pai Legal. Num país onde cerca de 30 milhões de pessoas não possuem o pai identificado, conscientizar sobre esse assunto pode ajudar a reduzir o número de delinquentes nas ruas.

Claro que importa o tipo de pai que se é, mas antes de tudo: houve um pai? Quem ele é? Por mais que as mulheres estejam ocupando um duplo papel em muitos lares, e dando conta do recado, existe um componente psicológico nessa questão que não pode ser ignorado.

Há vários motivos para que o pai esteja registrado na certidão do filho (requisição de amparo material na falta da mãe, por exemplo), porém o mais importante é o sentimento de inclusão em um núcleo familiar completo, sem espaços em branco, e o orgulho e a responsabilidade que disso advém.

O lado bom da história é que, se existem pais-fantasmas, por outro lado há uma infinidade de pais protagonizando cenas impensáveis décadas atrás. No último domingo, estive no supermercado e vi um pai ensinando sua filha de uns 11 anos a avaliar se um tomate está maduro ou passado.

Os dois se divertiam fazendo compras juntos, e fiquei pensando que essa garota pode nem vir a ser uma boa cozinheira, mas sua estabilidade emocional promete.

No mesmo dia, vi da sacada do meu apartamento (que dá para um clube) um pai brincando com dois filhos na piscina, formando com os braços uma cesta de basquete para que os guris jogassem a bola.

A cena pode parecer meio boba, mas garanto que aqueles guris preferirão lembrar disso quando adultos, ao invés de um pai que se mantém na borda, prometendo que verá as cambalhotas do filho na água, mas que assim que a criança mergulha volta a conversar com os amigos, sem ter prestado um segundo de atenção.

A emancipação da mulher gerou um equívoco: a de achar que os pais tornaram-se desnecessários. Absurdo. Bem pelo contrário, nossa emancipação permitiu que o papel dos pais na criação dos filhos fosse ampliado.

Eles deixaram de ser meros provedores para tornarem-se essenciais participantes da educação moral, social e afetiva dos pirralhos. Mas é preciso partir do começo: o reconhecimento de que esse pai existe.


29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
ARTIGOS - Joaquim Clotet*


Novos horizontes

O início do ano letivo é, geralmente, motivo de esperança e de otimismo. Vislumbram-se novos horizontes. Alunos, professores e famílias ajustam suas agendas. A vida retorna à sua normalidade, incorporando as imprescindíveis mudanças.

Neste contexto, a inovação é a trilha do acerto e do sucesso, quer no plano individual, quer no profissional. Inovar é percorrer o caminho do bom êxito explorando ou projetando metas desafiadoras. Executar sem mudar pode ser expressão de burocracia e de rotina.

O elã pelo progresso é próprio das pessoas e das instituições. No que se refere aos indivíduos, por exemplo, a decisão dos jovens estudantes Bill Hewlett e David Packard de transformar sua garagem em laboratório foi a origem de uma grande e bem-sucedida organização de TI.

O recentemente falecido Steve Jobs deixou como legado para sua empresa um novo campus, centro de pesquisa e de inovação, de sete hectares, no Vale do Silício. A idade, neste tema, não faz diferença. Lorin Maazel, violinista e compositor, aos seus 80 anos, 75 dedicados à música, é maestro regente da Orquestra de Paris e, proximamente, o será da Orquestra Filarmônica de Munique. No que diz respeito às instituições, não há grande diferença.

A Universidade de Harvard, quase no seu início, introduziu cursos profissionalizantes nos seus programas, o que era incomum na época e no país, obtendo mais tarde reconhecimento universal. Mario Monti, primeiro-ministro da Itália, e até recentemente professor e reitor da Universidade Luigi Bocconi de Milão, destacada nas áreas de economia, gestão e finanças, desafia os jovens para a busca, a escolha e o exercício de mais de uma profissão.

O Brasil, por meio do seu Programa Ciência sem Fronteiras – elogiável iniciativa da Presidência da República e dos ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação e da Educação –, reconhecido e apoiado internacionalmente, abre inúmeras possibilidades de aquisição de relevantes experiências internacionais e de capacitação altamente qualificada à juventude do nosso país.

Pode-se afirmar que os jovens graduados brasileiros são reconhecidos como bons profissionais da medicina, da odontologia, da enfermagem, da engenharia e da comunicação, entre outras profissões, em países como Reino Unido, Suécia, Finlândia, Estados Unidos, Canadá e outros.

O momento histórico brasileiro, no contexto mundial, mostra-se extremamente favorável à formação de estudantes na perspectiva de amplos horizontes que oportunizem experiências criativas, diversificadas e inovadoras. Acresce-se a tais fatores a necessidade de uma educação orientada por sólidos princípios morais e religiosos, quer dizer, de uma formação integral. Assim sendo, abrem-se grandes, auspiciosas e desafiadoras oportunidades aos futuros profissionais de nosso país.

*REITOR DA PUCRS


29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
DIANA CORSO


Vizinhos, melhor tê-los

Não faz muito, caminhão de mudança me dava arrepio. Apesar de que havia feito uma boa troca: um apartamento por uma casa bonita onde minhas filhas cresceram brincando com os vizinhos à moda antiga. Mas ainda me ressentia do caos da chegada, da longa jornada de improviso. Num lugar maior, os poucos e esmirrados móveis pediram para ficar juntos por medo da solidão e não havia dinheiro para povoar aquele latifúndio.

As meninas nem ligavam, mais espaço para correr. Por sorte o resto dos habitantes do condomínio semiocupado também usava lençóis no lugar das cortinas. Quando todos nos assentamos, com estofados e móveis sob medida, perdeu um pouco a graça.

Quintana já dizia que amar é mudar a alma de casa e, parodiando-o, posso dizer que mudar é amar em outras casas. Não me refiro à família, que muda junto, mas aos vizinhos. Podem ser de porta, de condomínio, de rua, de bairro. São pessoas que encontramos nas horas de desalinho, nos momentos descontraídos, ou nos quais parecemos por vezes atropelados: quando acordamos, ou voltamos destruídos do trabalho, ou ainda nos ocorreu algo triste. É infalível, o vizinho sempre está lá, no elevador, na porta, ele pode trocar um comentário ou não, mas nos testemunha.

Escrevo sobre vizinhos porque perdi minha primeira vizinha. O nome não lembro, nós a chamávamos de Chichi (no Uruguai, se pronuncia “Tchitchi”). Guardava dela uma lembrança infantil doce: ela dando-me um banho na sua casa. Nunca entendi por que essa imagem me era tão grata. Pois agora, quando soube da sua morte, à minha mãe ocorreu contar-me um episódio que conscientemente eu não lembrava.

Foi essa vizinha que me deu o primeiro banho, ajudando minha jovem mãe atônita. Também lá estava ela em vários outros momentos importantes da minha primeira infância. Ambas nos mudamos, ela de casa e eu de país, mas sua proximidade me marcou. Simplesmente porque estava ali ao lado e soube entender que era necessária. O coração fica um pouco em cada casa, adeus Chichi!

A construção da personalidade não se faz somente da família e escola: crianças sempre observam atentamente como vivem e se comportam as pessoas em volta. Nesse ponto, como elas, absorvemos o contexto, não importa quão impessoais as cidades tenham se tornado.

Hoje, outra vez num apartamento, tenho bons vizinhos e uma ótima vizinha de porta. Nos encontramos nas horas amassadas para falar das filhas crescidas e dos cachorros velhos. Sei que às vezes dá azar, mas da loteria da vizinhança realmente não posso me queixar. Perdi o medo de me mudar, graças aos vizinhos.


29 de fevereiro de 2012 | N° 16994
PAULO SANT’ANA


Corpo a corpo com o pitbull

Quase não dá para acreditar no relato que vocês vão ler agora. É inacreditável que um homem tenha enfrentado um pitbull.

Mas deixemos que o poeta e editor Rossyr Berny (atendimentoalcance@gmail.com) conte ele próprio o que foi sua experiência, que está nas linhas abaixo.

Caro jornalista Paulo Sant’Ana, igual ao senhor, também odeio pitbull. Neste sábado, descobri que um homem calmo, despertada sua fúria, pode ser fera, também.

Estava em casa quando vi, na rua, um pitbull estraçalhando um gato. Era a besta puxando o bichinho para baixo de um carro – para poder estraçalhar melhor –, e uma mulher tentando livrar o gato da bocarra assassina. Cada qual puxando para um lado; e o bichinho no meio, esticado ao limite do esquartejamento.

Enlouqueci, pois lembrei que, há poucos dias eu dava assistência, no Pronto Socorro, a um funcionário de minha firma que se acidentara feiamente de moto.

Naquele momento, os médicos realizavam uma cirugia em um garoto atacado por pitbull.

Meus ouvidos e meu coração nunca esquecerão o grito de desespero daquela mãe, ao receber a notícia da morte do filho: “Meu menino, não!”.

Aquele grito horrorizado foi uma bomba de dor no interior do Pronto Socorro. Não suportei, saí chorando porta afora. (Dores de perdas trágicas conheço bem; pai e irmã, atropelados e mortos no trânsito.)

O desespero do coração da mãe me veio à mente, vendo a cena dantesca. Então, descobri que um homem tranquilo pode ser fera, também.

Ajoelhei-me junto ao carro onde a besta puxava o gatinho para baixo e agarrei com a força que Deus me emprestou a garganta do pitbull. Soltou-se na minha primeira tentativa, na segunda... Voltei ao ataque e consegui uma posição dos cinco dedos segurando, se fechando e destruindo a traqueia do sanguinário.

Nos debatíamos, num jogo de forças entre ele e mim; nem ele largava o gatinho nem eu soltava sua garganta. Ficamos a eternidade de minutos naquela luta bárbara. Até que, sem fôlego, trancando-lhe o ar – é assim que eles matam as crianças –, soltou o desesperado gatinho, o qual perfurava meu braço, tentado livrar-se da morte.

Voltou-me à mente o grito da mãe vendo o filho falecido: “Meu menino, não!”. Agarrei o pitbull pelas patas traseiras e comecei a girar rapidamente sobre meu eixo. A cada duas voltas, quando pegava velocidade, rebentava o corpo dele contra a parede da casa ao lado do carro; mais voltas, mais força... e o grito daquela mãe no meu ouvido, ferida de morte; mais voltas e rebentei o corpo dele no asfalto, pois ele ainda tentava girar sobre si para me morder. Repeti, sempre girando, o choque dele contra o muro, contra a cerca, contra o chão. Meu Deus, o desespero daquela mãe...

Repeti o cerimonial macabro e, por fim, imaginando o diabo morto, o joguei para a estratosfera, de onde caiu, estatelado.

Incrivelmente, o pitbull ergueu-se. Ficamos nos olhando, agora cara a cara, ambos em posição de ataque. Ele com os olhos assassinos, aquela bocarra de pegar crianças...

Meu coração saindo pela boca, dizia-lhe, desafiador: “Vem me pegar como pegam as crianças, vem!”. Mas veio foi o dono dele, que o deixara escapar de casa – onde também tem criança. (Esses donos buscam, de maneira velada, alguma compensação da virilidade masculina ausente?)

Levaram o gatinho para ficar muitos dias numa clínica veterinária, caso milagrosamente se salve.

Voltei para casa, impactado. Pensei nos que me conhecem há quase 60 anos e jamais, jamais, me viram numa atitude violenta.

Senti um rasgo de alívio, acima de tudo pelas mães que tiveram seus filhos estraçalhados por pitbulls. E por outras que ainda terão.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012



28 de fevereiro de 2012 | N° 16993
LUÍS AUGUSTO FISCHER


Vagas para paulistas

Desculpa chatear com assunto aborrecido mas, por indicação do meu amigo Flávio Azevedo, professor também, fui ler um texto de O Estado de São Paulo, de 9 de janeiro passado. O título: “O SISU e a mobilidade estudantil”. SISU é Sistema de Seleção Unificada, correlato do ENEM, Exame Nacional do Ensino Médio, que se transformou, de modo abrupto e autoritário, no megavestibular do país.

Acontece assim: o sujeito presta as provas do ENEM e obtém uma certa nota; com ela, ele se inscreve no SISU para o curso que deseja, na universidade que pretende. Um mercado nacional que se movimenta então: se muitos pretendem a vaga, sobram uns quantos candidatos, que se inscreverão para outra vaga. E assim vai, por algumas rodadas.

O artigo do Estadão trazia uns números que o senhor precisa conhecer: 4 em cada 10 estudantes paulistas entram em universidade pública fora de São Paulo. Ano passado, 4.327 estudantes paulistas ingressaram em cursos superiores fora de seu Estado. E estes números tendem a crescer. Crescer, digo eu, avançando nas vagas que até agora eram preenchidas com gente de fora de São Paulo.

O senhor, como eu, não tem nada contra paulistas, certo? Nada. São gente tão sublime e tão ridícula quanto qualquer um de nós, de qualquer parte do planeta. Querendo chegar, chegue. Mas não é esse o ponto: o que está em causa é que São Paulo, que já concentra enormemente renda e população, agora também concentra essas vagas públicas.

O argumento simplista é que eles se saíram melhor que os outros brasileiros. Mas há muito mais aí: um país precisa pensar em suas diferenças, equilibrando a coisa, sem a ilusão de unificá-las apenas com a lógica do vencedor da hora.

Termino citando trecho final do texto do grande jornal paulistano: “Ao propiciar maior mobilidade dos estudantes universitários pelo País (...), a criação do vestibular unificado torna as universidades federais mais cosmopolitas.

Para privilegiar os estudantes locais e tentar evitar a invasão de vestibulandos de outros Estados, as universidades federais enfatizavam o regionalismo em seus processos seletivos. Elas exigiam, por exemplo, dados da história social, política e econômica do Estado em que estavam situadas e de escritores regionais.

A reforma do Enem acabou com esse expediente, democratizando o acesso à rede de universidades federais e pondo fim a um provincianismo pedagógico que prevaleceu durante décadas.”

Alhos e bugalhos entreverados, numa cantilena concentracionista de dar dó (em nós mesmos). Que tal?


28 de fevereiro de 2012 | N° 16993
PAULO SANT’ANA


Fotos inevitáveis

Fico de oito a 10 horas por dia na Redação de Zero Hora.

Mas, se gasto em média duas horas para escrever minha coluna, por que fico de oito a 10 horas na Redação?

Pelo seguinte motivo: é que as outras seis ou oito horas em que permaneço na Redação ocupo em tirar fotos com as misses das festas das cidades do Interior que as mandam para PoA a fim de serem divulgadas.

As comitivas vêm a Zero Hora aos magotes. E elas me perguntam: “O senhor pode tirar uma foto conosco?”.

Eu respondo: “É inevitável”.

Batem as fotos. Uma miss me pede em particular: “Agora o senhor poderia tirar uma foto comigo sozinha?”.

Eu respondo: “É inevitável”.

Quase sempre vem o prefeito na comitiva. E o prefeito quase sempre quer tirar outra foto, desta vez sozinho, comigo.

Mas eles não batem uma foto só, sempre há alguém da comitiva que diz: “Bate mais de uma foto para garantir”.

E eu fico oito horas por dia batendo foto com as misses.

Agora é que descobri por que o Luis Fernando Verissimo nunca pôs os pés na Redação de Zero, há 40 anos que faz sua coluna em casa.

Assim é fácil ser colunista de Zero Hora.

Eu queria ver ser colunista servindo de boneco para fotos durante todo o dia!

E quando batem a foto e quem está servindo de fotógrafo me intima: “Ri, agora, Sant’Ana, que vamos bater outra”.

E eu respondo: “Rir do quê?”.

A apresentação do Cirque du Soleil na cerimônia de entrega do Oscar foi a mais impressionante atuação humana em qualquer palco, em toda a história dos espetáculos.

Eu, que ando de bengala atualmente, não tenho equilíbrio e quase despenco pela inativação de meus dois labirintos, valorizei por isso ainda mais o que fizeram os acrobatas circenses.

Não sei como conseguiram os organizadores do show colocar aquela gente toda no palco e em volta dele a maravilhar o mundo com suas peripécias.

Nunca houve, só por causa do Cirque du Soleil, uma cerimônia mais importante do Oscar do que esta do último domingo.

Quem não viu perdeu a chance de assistir a uma das maiores façanhas artísticas do homem sobre a Terra.

Eu me beliscava para acreditar que aquilo que estavam mostrando os artistas não era um desenho animado.

Espetacular, fantástico, extraordinário!

Quero elogiar a direção do Banrisul por ter cumprido seu dever de banco público ao não conceder à empreiteira Andrade Gutierrez financiamento para a reforma do Beira-Rio sem as garantias de praxe.

Pela primeira vez na história, alguém teve o topete de enfrentar os poderosos deste país.

E o peito da Andrade Gutierrez, em publicar uma nota chantageando o Banrisul e o governo do Estado!

Tiveram a reação gaúcha que mereciam.


28 de fevereiro de 2012 | N° 16993
DAVID COIMBRA

Quando eu quero ser mau

A melhor qualidade que um ser humano pode ter é a bondade.

Kant não concordaria. Do alto de sua capacidade filosófica germânica, ele não considerava a bondade predicado. Por uma razão irredutível: por ser inata. Quer dizer: a pessoa nasce com aquilo, não se esforça para sê-lo. Como a beleza física – não existe nenhum mérito nela, a não ser uma harmônica combinação de genes.

Mas, embora não haja méritos, não há nada de errado em admirar quem foi dotado com uma boa aparência ou com um bom coração. O mundo é um lugar melhor para se viver quando andam sobre sua superfície uma Megan Fox ou um Gandhi.

Só que a beleza não cansa, mesmo quando surge em excesso, como a de Catherine Deneuve em horário nobre. Bondade, sim. Bondade demais cansa.

Digo isso porque tenho uns dois amigos, não mais do que dois, que são tão bonzinhos que despertam em mim o que tenho de pior. Aquela bondade melequenta me irrita. Quero ser mau quando estou com eles e, o mais grave, transformo-me, realmente, em uma pessoa má. Vejo malícia em tudo, enxergo todos pelo lado ruim, sou crítico e amargo, sou agressivo, sou veemente, sou como alguns comentaristas de blog.

Como pode a bondade pura gerar sentimentos ruins?

Aí está. Entendo o motivo. Ainda que Jesus tenha garantido que os mansos herdarão a Terra, a mansidão não é uma qualidade apreciada pela maioria das pessoas. Porque a mansidão parece frouxidão, e as pessoas não gostam de quem é frouxo. As pessoas gostam de quem é bom, sim, mas desde que a bondade seja atuante, decidida e positiva, jamais passiva. A bondade tem de saber ver a maldade onde a maldade existe.

Difícil não ver maldade nas intenções da Andrade Gutierrez nesse negócio com o Inter para a reforma do Beira-Rio. E o presidente do Inter, Giovanni Luigi, que é um homem cordato e educado, que respeita as outras pessoas, ou seja, que é um homem bom, o presidente do Inter já viu essa maldade. A irritação silenciosa que o presidente demonstra em suas entrevistas mostra isso.

O bom caráter do presidente do Inter não faz dele um manso, na pior acepção da palavra. Nada disso. Luigi tem demonstrado que sabe agir, quando é preciso.

Agora é preciso.

À beira da areia

Pela primeira vez em nem sei quantos anos, passei mais de uma semana sem escrever. Aluguei uma casa nas franjas da areia do Litoral Norte e me mantive com a dieta básica de caipirinha e pastel de camarão, longe das malhas da internet, dos debates de rádio e TV e das aflições da cidade grande, como diria o velho Pinheiro Machado. Li apenas literatura, olhei o mar indo e vindo, indo e vindo, e senti meu cérebro atrofiar gostosamente.

Foi pouco tempo, sei, mas o suficiente para encontrar algumas mudanças no retorno. Sobretudo mudanças de concepção, que são as mais importantes. O Grêmio está voltando a pensar como pensou um dia. Pensando que a grandeza não prescinde do empenho. Que o talento se esfarela sem o cimento do esforço. É uma evolução.

As ideias de Luxa

As saídas de Caio Jr. e Douglas deram ao Grêmio mais do que alguma evolução técnica ou tática. Deram ao Grêmio uma evolução ideológica.

O Grêmio agora retoma a ideia de que é preciso ser agressivo na tomada da bola para ser agressivo quando tiver a posse dela. Um time só se torna vencedor se tem meio-campistas que participam do jogo com intensidade.

Foi assim que o Grêmio envolveu o Inter no Gre-Nal, e assim foi melhor do que o Caxias na Serra. Perdeu nos pênaltis porque pênaltis são imponderáveis. A ideologia não é imponderável.

Existe um mito de que Vanderlei Luxemburgo é um técnico ofensivista. Balela. Vanderlei Luxemburgo preza o bom jogo, claro que sim, mas sabe que o bom jogo só é jogado quando se tira a bola do adversário.


28 de fevereiro de 2012 | N° 16993
FABRÍCIO CARPINEJAR


As meias vermelhas de meu tio-avô

Escrevi sobre o padre Nejar e recebi inúmeras confidências dos leitores.

Agora, sim, acho que o conheço bem. Conhecemos uma biografia quando desfrutamos de informações suficientes para mentir a seu respeito.

Já poderia, portanto, mentir sobre Alberto Nejar, meu tio-avô, mas desejo expor uma verdade.

A verdade sempre me seduziu mais do que a mentira. A mentira impressiona, a verdade emociona.

Alberto Nejar era monsenhor da Igreja São Geraldo.

Passou a vida esperando ser bispo, pois estava a um passo da recompensa profissional. Tratava-se da próxima escala; natural, previsível. Assim como depois de um capitão vem a estrela de major, assim como depois de um capitão-tenente vem a cruz bordada de capitão de corveta.

Alberto aguardava assumir o ruivo do solidéu, o rubro da batina. Ansiava pelo reconhecimento do trabalho comunitário, da evangelização dos jovens pelo esporte, das campanhas de agasalho e acampamentos no Interior.

O que me entristece é que ele, tão certo da promoção, tão convicto da transição, comprou meias vermelhas de bispo jurando que seria chamado. E não foi. Nunca foi.

Ele dormia com meias vermelhas de bispo para atrair sorte, talvez para convencer o destino a entregar a carta do Vaticano no dia seguinte. E não veio. Nunca veio.

É um desconforto projetar o quanto ele sofreu em silêncio. O quanto padeceu em segredo para não ser tachado de ambicioso.

Mas alguém incutiu a esperança nele, Alberto não concluiu sozinho que seria bispo. Tudo deve ter partido de uma insinuação, de uma fofoca. Alguém influente torturou Alberto com sua própria fé. Criou uma falsa expectativa para retirar o resto pouco a pouco, para deserdá-lo do sentimento de justiça e retribuição que tinha pela vida.

O exemplo de meu tio renova meu cuidado na hora de conversar: não temos o direito de maltratar a esperança do outro.

Se não ama seu namorado ou sua namorada, deixe ir, não fique prendendo por comodidade e vaidade. Se um convite desagradou, diga de cara, não torture com desculpas.

Se está interessado em promover um funcionário, faça logo, não fique adiando ou explorando a expectativa para que o sujeito trabalhe mais. Se pretende oferecer um presente, dê logo, sem suspense, não realize chantagem.

Há a necessidade de ser direto e evitar insinuações que provoquem mal-entendidos. Não procure o benefício da dúvida, e sim a lealdade da palavra.

Falar a verdade o quanto antes, para que a pessoa possa adaptar-se com a perda, criar um novo sonho e mudar a cor das meias.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012



27 de fevereiro de 2012 | N° 16992
WIANEY CARLET


Capital fora

O Grêmio jogou menos do que contra o Inter, e o Caxias foi melhor do que quando enfrentou o próprio Inter. Consequência: empataram no tempo normal, e o Caxias despachou o Grêmio nos pênaltis. Não foi um bom começo para Vanderlei Luxemburgo. Algumas individualidades que brilharam no Gre-Nal tiveram desempenhos modestos no Centenário. Porto Alegre ficou fora da decisão. O Interior foi mais competente.

O Grêmio não conseguiu repetir o jogo de superação do Gre-Nal. Esta foi a constatação mais preocupante do jogo de ontem, mas Luxa disse bem: não basta atitude, é preciso jogar bem, e o Grêmio jogou mais ou menos.

Parece – No início de fevereiro, o presidente da Andrade Gutierrez garantiu ao ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, que tudo estaria resolvido quando aquela autoridade viesse a Porto Alegre, dias mais tarde. Enquanto isso, circulava a informação de que 95% das questões burocráticas estavam resolvidas e a assinatura do contrato era iminente.

A nota publicada pela AG, sábado, desmente tudo o que estava dito e, pior, sugere que a construtora está buscando uma desculpa para sair do negócio. A queixa da AG contra o Banrisul é tão pueril que só pode ser entendida como desejo de abandonar o barco.

Interpretação – A nota da Andrade Gutierrez enseja esta interpretação: a construtora não quis bancar os custos da reforma do Beira-Rio, por esta razão buscou financiamento e investidores. O BNDES não negou financiamento, mas pede garantias bancárias.

Não deveria ser problema para uma empresa do tamanho da AG conseguir sozinha essas garantias. Porém, ela optou por ter sócios-investidores na reforma do Beira-Rio. Na própria nota publicada, ela admite ter apenas 20% de participação na Sociedade de Propósito Específico. Portanto, os demais investidores terão 80% da responsabilidade de tudo na obra, e esses não oferecem garantias indispensáveis para que o financiamento seja obtido.

Objetivo – Parece inequívoco o objetivo da AG, segundo o seu comunicado: pressionar o governo esta­dual, tentando transferir ao Estado, por meio do seu banco, a responsabilidade pelo início das obras que dependem das garantias.

Acontece que o Banrisul não dará essas garantias porque os investidores não tem como demonstrar que podem pagar o empréstimo. E se não pagarem e o Banrisul der a garantia, o banco acabaria arcando com, no mínimo, 80% da reforma do Beira-Rio. A AG pressiona o Banrisul como última alternativa, apelando para a emoção. O Banrisul não deverá ceder.

Resumo – Tudo indica que a AG participou e venceu a licitação, elaborou a minuta, se arrependeu e estava procurando justificativa para não fazer a obra.


27 de fevereiro de 2012 | N° 16992
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL


Cinco páginas

Noah Lukeman não é de brincadeiras. É agente literário em Nova York. Lá, a vida é dura. Ele tem 39 anos. Sua carteira de clientes inclui autores premiados e reconhecidos pelo público. Não cultiva preconceitos: tanto promove escritores literários como comerciais. No passado foi editor e, portanto, conhece ambos os lados do balcão.

É dele a afirmativa: “Deus ajude o editor profissional que necessite ler 50 páginas para avaliar todos os originais; ele nunca sobreviverá. Não conseguirá dar conta dos 10.000 manuscritos atrás dele, condição para tocar o seu negócio. Este tipo de trabalho ensina você a tomar decisões instantâneas. Algumas pessoas não conseguem – ou não querem – fazer isso, e então deixam o ramo”.

É de Noah Lukeman um best-seller [ele também escreve] chamado de The First Five Pages, saído pelos editores Simon & Schuster, de NY. O enigmático título é acompanhado de chamadas atraentes: Evite os erros comuns nos originais; atraia a atenção de agentes e editores; eleve a qualidade de seu texto. Na contracapa, uma promessa animadora: “Se você está cansado de rejeições [de editores e agentes, of course], este livro é para você”. Bom marketing, sem dúvida.

O livro não se dirige apenas a romancistas ou contistas; serve também para jornalistas, poetas e escritores de não-ficção. Há vários recados de Lukeman. Um destes: não adianta mandar sinopses para as editoras e agentes. O autor diz que e agentes e editores ignoram sinopses. Se eles se dão conta de que o livro é bom, então é que vão ler a sinopse.

E quais são os problemas apontados? Lukeman vai direto: uma abertura com um “gancho” fraco; uso exagerado de adjetivos e advérbios; metáforas fracas ou forçadas, e similares; tom melodramático, lugares-comuns e diálogos confusos; caracterizações pouco desenvolvidas e situações “sem vida”; ritmo irregular e falta de progressão da narrativa ou da exposição. Está recheado de exemplos.

Escritores sorriem ao ler esses conselhos. Talvez não fosse o caso. São muito úteis, especialmente para quem começa e, em geral, ninguém lhe diz essas coisas.

Se o livro ainda não resolver, estão aí as cinco páginas iniciais do Gênesis. Não importa se você é ateu ou crente. Com limpidez e singela elegância, a Bíblia é uma das mais eficientes aulas de bem escrever. A criação do mundo, do primeiro homem e primeira mulher, é contada em 30 frases. E isso alguns milênios antes de Lukeman. Leia e constate.


27 de fevereiro de 2012 | N° 16992
PAULO SANT’ANA


Jamelão exegeta

O lendário puxador de samba da Mangueira, meu amigo Jamelão, com quem compartilhei muitas rodas de samba e grandes almoços em Porto Alegre, conseguiu mudar para pior a linguagem jornalística.

Explico: sempre que algum jornalista o entrevistava e empregava a palavra puxador, Jamelão o corrigia, dizendo que não era puxador, que era intérprete.

Jamelão dizia que não puxava sacos no porto, que não puxava saco, que não era portanto puxador, era intérprete.

Visivelmente, o grande cantor achava um desmerecimento ser chamado de puxador.

Tanto Jamelão, o maior de todos os puxadores do Carnaval brasileiro, insistiu em amaldiçoar a palavra puxador, que a Globo e todas as emissoras que transmitem Carnaval aboliram da linguagem a palavra puxador e passaram a usar a palavra intérprete.

Estão todos errados, o principal cantor de uma escola de samba é o puxador.

Intérprete é uma palavra feia e esnobe. Intérprete é o exegeta, o hermeneuta, o analista.

Nunca aquele que lidera em melodia e versos um samba-enredo na avenida foi e será um intérprete, sempre será um puxador.

Por sinal, não conheço palavra melhor empregada que puxador para aquele que é a estrela-guia de uma escola de samba na avenida.

De uns anos para cá, não existe um só puxador, são diversos, que se agrupam em torno do carro de som e lideram sua escola no desfile, todos cantam baseados no que canta o puxador.

Intérpretes são os milhares de integrantes de uma escola de samba, puxador só existe um, aquele que pelo microfone conduz o canto de toda a escola.

Miseravelmente o jornalismo baixou a cabeça para Jamelão e substituiu a palavra puxador pela palavra intérprete, o que ficou feio, inadequado e pouco claro.

Conclamo a todos que voltem a chamar o puxador de puxador, uma ótima definição encontrada pelo povo para classificar aquele que puxa o samba, isto é, arrasta toda a escola para a letra e a melodia do enredo. Sem o puxador, a escola de samba ficaria à deriva e não se entenderia o desfile.

Lamentavelmente um capricho absurdo do Jamelão veio a modificar a língua portuguesa. Não deveriam ter dado ouvidos ao célebre sambista.

Terminou o primeiro tempo de um jogo que eu estava vendo pela televisão na semana passada e o narrador disse o seguinte: “Agora vamos passar para as grandes atrações do intervalo aqui em nossa emissora”.

Eu fiquei esperando os “melhores momentos” ou os gols dos outros jogos. Mas não, foi jogada na minha cara e na de todos os espectadores uma enxurrada de comerciais.

Foram cinco minutos de comerciais. As autoridades deveriam proibir por lei que qualquer emissora de televisão ou rádio transmitisse cinco minutos de comerciais. É demais, é um desaforo, um acinte, uma covardia com os telespectadores ou ouvintes.

Sei que as emissoras vivem dos comerciais. Eu, que trabalho em jornalismo há 40 anos, sei que fui sustentado durante esse tempo todo salarialmente pelos comerciais.

Mas então que qualifiquem os comerciais, que os resumam, que os dividam em espaços apocopados, mas não apliquem o castigo de blocos de cinco minutos em cima dos pobres coitados dos ouvintes.

É demais! E é tecnicamente contra os próprios comerciais.
27 de fevereiro de 2012 | N° 16992
L. F. VERISSIMO


Minha turma

Agora que o sangue serenou e todas as garrafas que lancei ao mar com mensagens ao desconhecido voltaram sem resposta, ou com o texto corrigido, agora que nem o eco responde aos meus gritos no precipício, ou responde mas com o tom enfarado de quem não aguenta mais repetir sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, agora que descobri que nenhum dos meus gurus tinha a resposta certa e um até confessou que nem ouvia as minhas perguntas e só fazia sim com a cabeça por boa educação, o que explica ele ter respondido sim quando eu perguntei se deveria seguir o BhagavadGita,

o Kama Sutra, O Capital ou uma combinação dos três, agora que já não se distingue a voz de uma secretária de outra no telefone, pois todas são eletrônicas e iguais, e da última vez que implorei por um contato humano, alguma coisa viva – uma hesitação, um erro de concordância, um resfriado, até, em último caso, uma reação irritada – a voz disse “para reação irritada, digite 4”, agora que eu não quero mais respostas, agora que eu desisti, vem você me dizer que eu não estou sozinho, que há outros como eu que já não esperam mais nada salvo a resignação dos mortos num bom sofá com controle remoto e talvez pipoca, que abominam a despersonalização, principalmente das pessoas, a pulverização de todas as certezas, o espargimento de todas as dúvidas, a eterização de todas as coisas – e que eles têm um site na internet!

Mas acho que você me deu o endereço errado pois, na minha caça desesperada a ávidos de resignação e burrice programada como eu, já dei num site que ensina a fazer bombas caseiras, outro de quem tem tara por Matildes, outro de um homem que propõe a troca de fotografias do seu bigode ridículo com as de bigodes ridículos de todo o mundo com a possibilidade de casamento e, veja você, um de alguém que propôs comprar vários dos meus órgãos para comer.

Não que eu fosse aceitar, sou muito apegado a todos os meus órgãos, apesar do que alguns têm me feito passar, mas só por curiosidade perguntei como ele prepararia, por exemplo, meu fígado e, num rasgo de sentimentalismo, sugeri que o servisse acompanhado de um Sauterne de boa safra.

Talvez seja esta a autoindulgência que nos reste, no momento do nosso desencanto, antes do último sofá. O tal cara que estava a fim das minhas tripas à moda de Caen não respondeu, mas descobri que eu tinha entrado num fascinante mundo doente, ao entrar na internet atrás da minha turma.

Quando tudo se volatiza e vira impulso pelo ar, o que sobra é isso, o ser humano reduzido às suas fomes e às suas esquisitices primevas, livre de qualquer controle ou compunção. A cara mais terrível da liberdade: cara nenhuma, ou apenas a cara que se quiser mostrar na net. Terroristas, fetichistas e canibais são – ou espero que sejam – minorias entre os habitantes deste mundo.

Mas, sei não. Há algo de assustador nessa variedade de prospecções predatórias, de buscas globais por afinidades estranhas, só esperando o toque numa tecla de computador para entrar na nossa casa e na nossa vida. Sei lá se eu não tenho alguma obsessão secreta (pés de noviças, por exemplo) só esperando um correspondente para se manifestar. Desisti de localizar meus similares na internet, os revoltados até com a revolta, começando por secretárias com voz de máquinas, quando me dei conta de que a primeira condição para ser mesmo da minha turma seria não frequentar a internet.

domingo, 26 de fevereiro de 2012


José Simão

Oscar 2012! Melhor DVD pirata!

Hoje é Dia de Dormir em Pé! Dia do Oscar! Merece um Oscar quem tiver saco de assistir ao Oscar até o fim!

Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Hoje é Dia de Dormir em Pé! Dia do Oscar! Merece um Oscar quem tiver saco de assistir ao Oscar até o fim!

Melhor atriz, às 2h. Sendo que às 2h qualquer mulher é uma grande atriz. Rarará! E aquele monte de discursos de "obrigado"? O Oscar devia ser entregue no drive-thru do McDonald's. O cara pegava a estatueta, passava ketchup e ia pra casa! Rarará!

Dia do "brega carpet". O "red carpet" devia se chamar "brega carpet"! E todo ano eu falo, insisto e repito: devia ter um Oscar pra melhor pipoca! A pipoca é sempre melhor que o filme! E Oscar pra melhor DVD pirata! Porque, numa banca de rua, "Vidas Cruzadas" estava anunciado como "Vidas Cuzadas!" Rarará!

E o Oscar de melhor intertrepação é do Zé Mayer! E Oscar de melhores efeitos especiais: apuração de escola de samba em São Paulo!

E a celebridade do Carnaval: o Rasgador de Notas. Ficou mais famoso que a J.Lo, o Neymar e o Michel Teló. E eu pedi pra ele vir rasgar o meu Imposto de Renda. Rasga meu IR! E um vizinho pediu pra ele rasgar o IPVA! E a fatura do cartão! E o boleto da "facul"!

E o site QMerda sugeriu pra ele invadir uma livraria e rasgar os livros do Sarney. Rarará! E uma amiga minha falou: "Ele é lindo, quero que ele me rasgue todinha". Rarará! E diz que na apuração das escolas do Rio não teve tumulto porque todos foram presos antes. Os bicheiros. As duas forças que sustentam o Carnaval do Rio: o bicho e a bicha!

E um amigo meu ainda não conseguiu sair de Salvador: toda vez que ele vai pro aeroporto, passa um trio elétrico e ele vai atrás e perde o avião! Rarará! E a piada pronta do ano: Ricardo Teixeira tem uma casa em Boca Ratón! Rarará!

E a manchete do Piauí Herald: "Serra anuncia que só será candidato se não houver eleição". E quem vai ser a vice do Serra? A Sônia Abrão? Rarará!

E o Oscar é sempre assim: a vencedora dá um grito, põe a mão na cara, beija a colega, sobe e diz: "Não tenho palavras". E solta umas 900 mil palavras! E a Meryl Streep?! Oscar sem a Meryl Streep não existe, é como televisão sem tela, bule sem bico e mulher sem perereca! Eu amo a Meryl Streep! Ela solta um pum e já é indicada pro Oscar! Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza!

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

Ferreira Gullar

Trocas e truques

Senador não é eleito para legislar? Por que então o presidente da República o convida para ministro?

Pouca gente há de se lembrar de um personagem que, antigamente, habitava o livro de leitura no colégio e que se chamava João Pergunta. E, se assim se chamava, era porque vivia a perguntar sobre tudo o que via ou ouvia. Às vezes penso que sou um pouco como ele, já que estou sempre a questionar o que acontece em meu redor. E particularmente no campo político, uma vez que é ali que muita coisa de nossa vida se decide.

Como não sou especialista no assunto, posso às vezes formular perguntas tolas, cuja resposta todo mundo já sabe, menos eu. Mesmo assim, insisto, porque, se não o entendo, não fico quieto.

Uma dessas coisas é a insistência com que ultimamente se nomeiam parlamentares para a função de ministro. Sei muito bem que isso não é de agora, mas sei também que nunca se tornou tão frequente. Alguma razão deve haver, porque político não prega prego sem estopa. E tanto mais pelas implicações decorrentes disso.

Pense comigo: deputado, senador não é eleito para legislar? Por que então o presidente da República os convida para ministro? Desconfio haver algo de errado nisso.

Ou será que não? Vamos examinar: o Estado brasileiro é composto de três poderes que, para o bom funcionamento do regime democrático, são independentes uns dos outros. Se não me engano, o Congresso tem como uma de suas funções fiscalizar o Executivo, impedindo assim que o presidente da República desobedeça o que o Parlamento decidiu e a legislação prevê. Logo, a relação entre esses dois poderes, se deve ser harmoniosa, deve também preservar-lhes a autonomia.

Será que essa autonomia se mantém quando o presidente da República coopta deputados e senadores para compor seu ministério?

Estará, no mínimo, comprometida, uma vez que o ministro é um auxiliar subalterno do presidente da República, a quem deve obedecer. E então a coisa fica assim: elegemos o cara para a função de legislador -o que significa representar-nos na elaboração das leis, na defesa de nossos direitos de cidadão, e ele passar a servir ao poder.

Não só não cumpre com a função para a qual o elegemos como passa a servir ao poder que deve ser fiscalizado por ele. Há algo de errado nisso ou sou eu que estou vendo chifre em cabeça de cavalo?

Não estou não, mesmo porque a coisa não fica aí. Na verdade, o presidente não o nomeia ministro por sua competência técnica, e sim por sua importância dentro do respectivo partido. Ou seja, ao fazê-lo, o presidente coopta não apenas o escolhido mas também o partido a que ele pertence. Disso resulta que, se por um lado, a relação autônoma entre os dois poderes se rompe, por outro lado e por isso mesmo, o ministério passa a ser um feudo do partido, que o usa conforme seus interesses político-eleitorais.

E como isso implica o desvio do dinheiro público para os cofres do partido, essa operação fraudulenta, para se efetuar, leva inevitavelmente ao envolvimento de outros personagens e instituições fajutas, como se viu recentemente nos escândalos de vários ministérios.

Mas a coisa não para aí. Como causa primeira de tudo isso, no caso do governo Lula, por exemplo, havia um projeto de poder pouco democrático, que está na origem mesma do PT. Como seu propósito era (e é) manter-se no poder indefinidamente, Lula evitou, em seu primeiro governo, aliar-se ao PMDB, que exigiria dele a partilha dos ministérios.

Como se sabe, está aí a origem do mensalão, que consistia em comprar com dinheiro os pequenos partidos, em vez de lhes dar cargos importantes no governo. Devido ao escândalo que resultou disso, Lula mudou de tática e passou a comprar os partidos de outro modo, oferecendo-lhes ministérios. Era o passo que faltava para que o governo petista se convertesse nessa espécie de neopopulismo, que rege hoje o país.

Essa cooptação de políticos visando a manutenção do poder teve como resultado um fenômeno até então inédito na vida política brasileira: a demissão, em apenas um ano, de sete ministros implicados em corrupção. O último deles entregou o cargo outro dia, e seu substituto -do mesmo partido, claro- também responde a processos na Justiça. Como se vê, ficha limpa, entre essa gente, é raridade.

Eliane Cantanhêde

Cambalhota em São Paulo

BRASÍLIA - O pouso de José Serra cria um novo epicentro na eleição para a Prefeitura de São Paulo.

Se todas as atenções, espaços de mídia e, principalmente, articulações políticas giravam em torno de Lula e Haddad, passam agora a girar em torno de Serra e Alckmin.

Serra e Alckmin são amigos na origem, adversários no PSDB e fadados a uma convivência forçada para, quem sabe, todo o sempre.

Serra precisa da força de Alckmin e da máquina do principal governo do país. Alckmin também precisa de Serra, para garantir São Paulo nas mãos dos tucanos.

Haddad míngua, Gabriel Chalita perde até a equipe, Gilberto Kassab assume ares de coordenador e porta-voz, como se sua ostensiva aproximação com Lula e Haddad jamais tivesse existido. Os partidos satélites reavaliam as condições das candidaturas e se reposicionam.

Trata-se, pois, de uma mudança e tanto no quadro e no cenário paulistanos. Mas a eleição ainda não começou... Serra venceu a primeira fase, mas faltam as prévias e a campanha não vai ser fácil. Há dúvidas, como sempre, sobre a participação efetiva dos tucanos: até onde eles vão ajudar, até onde poderão atrapalhar. É o "fenômeno Aécio", que se materializa a cada eleição.

Perfeccionista, obcecado, aplicado, autocentrado e irritante, tudo em Serra parece menor ou maior do que é -e polarizado. Ele é o primeiro nas pesquisas, mas acumula enorme rejeição; boia de salvação para os tucanos, não tem a simpatia de 9 entre 10 deles; é "O" candidato a prefeito, mas só pensa em ser presidente da República.

Convém ter um pé atrás diante das promessas de que Serra não vai abdicar da Prefeitura -de novo- para disputar a Presidência. Sua candidatura não apenas muda o epicentro da eleição paulistana como começa a definir também a campanha presidencial. Com Serra prefeito de São Paulo, tudo pode acontecer.

elianec@uol.com.br

Carlos Heitor Cony

O bufão amargo

RIO DE JANEIRO - Não é de hoje que os artistas, em geral, são os bobos da corte, ou seja, do poder. E a função dos artistas não é apenas a de distrair os poderosos, pelo contrário -a principal missão deles é criticar e, às vezes, insultar o poder.

Posso citar dois exemplos: o de Victor Hugo e o de Shakespeare. Em "O Rei se Diverte", Hugo nos dá a figura grotesca de um bufão com sua corcunda e com sua bela filha, finalmente seduzida pelo duque.

Não adiantou a vingança, "a tremenda vendetta", com que Rigoletto ameaçou o sedutor, por sinal, na melhor ária que Verdi escreveu contra o duque numa de suas óperas mais populares. Não adiantou: o poder se divertiu e quem pagou o pato foi o bufão, que ficou sem a filha e sem o emprego.

Em "Rei Lear", de Shakespeare, há outro bufão que diz a verdade o tempo todo para o velho rei que distribui seu reino e suas posses entre duas de suas filhas, sacrificando Cordélia, a mais fiel de todas. O bobo da corte chega a pensar que será chicoteado pela insolência, mas o rei limita-se a comentar: "És um bufão amargo" ("a bitter fool").

Ao que o bufão pergunta: "Qual a diferença entre um bufão amargo e um bufão doce?".

Nos dois casos, na amargura e na doçura, do ponto de vista do bufão, não há diferença. Ele próprio pede ao rei que lhe arranje um mestre que possa ensiná-lo a diferenciar a verdade amarga da doce mentira.

Na peça de Shakespeare não há seguimento para o pedido do bufão. Tal como o artista em geral, ele terá de virar-se sozinho, assumindo o castigo ou o prêmio para aprender a situar-se nos porões do poder.

A desculpa dada pela maioria, ou mesmo pela totalidade dos artistas, é que cumpriu a missão de denunciar a nudez do rei: julga-se a consciência da sociedade.

É um consolo. Mas, no fundo, será sempre um bufão amargo.

sábado, 25 de fevereiro de 2012


José Simão

Socuerro! Sogra de BBB é praga!

E o Carnaval continua! Carlinhos Brown vai pro Oscar! Vai ter Carnaval no Oscar! OBA! Rarará!

Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! E a manchete do Piauí Herald: "Serra anuncia que só será candidato se NÃO houver eleição". Rarará! E quem vai ser vice do Serra? A Sonia Abrão!

E esta: "Esfera de metal cai do céu no Maranhão". Foi Deus que jogou tentando acertar o Sarney! E eu adoro a Susana Vieira! Tá sapucando na maionese: ela disse que se acha parecida com a Jennifer Lopez.

Ou a véia fumou uns baseados ou confundiu as cervejas. Confundiu com o dragão da Skol. Rarará!

E o Carnaval continua! Carlinhos Brown vai pro Oscar! Vai ter Carnaval no Oscar! OBA! E um amigo: "E o discurso de vitória do Carlinhos Brown? Chupa Hans Zimmer. Alphabetagamatizado!". Rarará!

E começou o inferno fiscal: o IPVA é impagável. E o meu carro é implacável! E declarar Imposto de Renda na ressaca do Carnaval? Declaro duas dúzias de periguetes, três abadás e um mamãe sacode. Melhor: declaro que tô duro! Pronto! Não pode fazer essa declaração: declaro que tô duro?! Então, declaro que a Dilma tá gorda, que o Aécio tem bafo de onça e que a minha vizinha tá dando pro porteiro. Rarará! É isso!

Os impostos no Brasil não são altos. Nós é que somos baixos! Rarará! E socuerro! Todos para o abrigo! Me mate um bode! Apareceu a sogra do BBB! "Rafa beija Renata e sogra vai processá-lo por traição"! É um novo espécime: sogra de BBB! Eu já tinha visto ex-BBB, namorada de BBB, ex-namorada de BBB, mas nunca sogra de BBB.

Se sogra já é uma desgraça, imagine sogra de BBB! Rarará!

E a sogra é a cara da Vanusa! E já imaginou se toda sogra processasse o genro por chifre? Travava o Judiciário de vez. Devastava a Amazônia só pra papelada!

E sabe qual é a diferença entre o "BBB" e o lixão? Ambos fedem, mas no lixão dá pra fazer reciclagem! Rarará! E todo ano eu peço pro Boninho fazer um "BBB" só de sogras.

1) Cada um paga R$ 10 pra inscrever a sogra. 2) As sogras devem permanecer na casa por 45 anos. 3) Nenhuma sogra será eliminada. E não tem paredão. Só paredão de fuzilamento. Rarará!

E adorei esta faixa em Santa Teresa: "Xixi, uma vez só R$ 1. Pulseira do xixi, R$ 4. Válida pra todo o período de Carnaval". Adorei a pulseira do xixi. Pacote mijada! Rarará! Nóis sofre, mas nóis goza.

Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!

simao@uol.com.br


26 de fevereiro de 2012 | N° 16991CARTA DA EDITORA |
Marta Gleich - Diretora de Redação


Eclosão de ideias

Nesta semana, surgiu um fenômeno na Redação. Ainda não tem nome. Se tiver uma sugestão, por favor, envie para o e-mail ali em cima. Vou tentar explicar do que se trata. São bastidores de Zero Hora, mas têm tudo a ver com você, leitor.

Alguém pega um microfone, chama todo mundo e fala no máximo por 15 minutos sobre algo útil para a equipe. Pode ser algo muito bom que fizemos. Ou que não foi tão bom, para aprendermos como poderia ser melhor da próxima vez.

Uma novidade. Uma inovação. Os bastidores de uma matéria feita por veteranos que se transforma numa aula para quem está chegando. Ou, se colocar tudo no liquidificador, como fazer Zero Hora com mais qualidade.

O primeiro, apresentado por Pedro Lopes, editor dos conteúdos digitais, e por Marcelo Ermel, editor de Geral, teve como tema “Como publicar um serviço ainda mais útil para os leitores: os conteúdos necessários no online e no papel”.

No segundo, Márcio Câmara, comandante da equipe de diagramadores, detalhou como o design da página pode ajudar o leitor a encontrar mais rápido a informação que procura.

No terceiro, os repórteres Humberto Trezzi e Carlos Wagner, multipremiados e veteranos da Redação, falaram sobre estratégias para se conseguir uma boa informação.

– Ao ler o jornal, muitas vezes o público não tem noção do que passamos para conseguir aquele texto. Às vezes, trabalhar aqui no Estado é mais difícil do que em uma cobertura na Líbia – contou Trezzi, experiente em coberturas internacionais.

O fenômeno instantâneo de compartilhamento de ideias e experiências da Redação foi inspirado em flash mobs e TEDs.

Flash mob: manifestação que acontece de repente, combinada por um grupo, mas sem prévia convocação do público, surpreendendo quem está passando por ali. Tão rápido quanto se forma, se dispersa, e a vida segue. Se quiser saber mais, emocionar-se e assistir a ideias geniais, procure flash mob no YouTube.

TED: tipo de conferência para comunicação de ideias, criado por uma fundação sem fins lucrativos nos Estados Unidos e disseminado por todo o mundo – em Porto Alegre também já aconteceu. Se quiser aprender com centenas de palestras do TED, vá a www.ted.com. Muitas têm tradução para o português.

Uma apresentação no TED (acrônimo para Tecnologia, Entretenimento, Design) dura não mais do que 15 minutos. Por que tão pouco tempo? Simples: se você não conseguir passar sua ideia em 15 minutos, esqueça. O mundo parece estar girando mais rápido, e a gente precisa acelerar. Ainda mais quem trabalha com comunicação. Sabia que prender seu interesse por mais tempo, nesta era de fragmentação da atenção, é bem mais difícil? Aliás, é bom não me estender por aqui, ou você vira a página.

Então, para concluir e deixar você ler seu jornal de domingo: nossos happenings de jornalismo são uma maneira divertida e surpreendente de treinar, compartilhar, aprender, melhorar, valorizar as pessoas e suas boas iniciativas. Sem burocracia, sem perda de tempo.

Para as próximas semanas, acreditem, já tenho sugestões para 12 diferentes temas, que são... não vou contar. A surpresa faz parte da estratégia. Mas pode ter certeza de que todos têm como eixo fazer melhor este jornal. Para você.


26 de fevereiro de 2012 | N° 16991
MARTHA MEDEIROS


A geladeira e o livro

No fim das contas, tudo o que queremos é ser amados

Fazia dois dias que minha geladeira havia entrado em pane. Não deixou de resfriar, mas as luzes do painel piscavam o dia inteiro, como se fosse uma bomba a ponto de explodir, e o alarme disparava de tempo em tempo, mesmo a porta estando bem fechada.

Sou otimista, achei que tudo se resolveria num passe de mágica, mas o coelho não saiu da cartola e acabei tendo que chamar um técnico, que agendou a visita para a manhã seguinte, às 9h30. Quando eram 9h25, as luzes do painel, antes esquizofrênicas, apagaram. O alarme já não disparava desde a noite anterior. Eu não queria mágica?

A primeira coisa que disse ao técnico: “Acredite, há dois dias que esta geladeira está tendo chilique, só parou quando o senhor começou a subir pelo elevador”. Ele me deu um olhar compreensivo, fez um check up no aparelho e descobriu um pequeno defeito. Alívio. Morri com R$ 300, mas a geladeira ganhou uma sobrevida. E minha neura, também.

Ninguém gosta de passar por exagerado. Ao sairmos do cinema, somos capazes de listar um sem-número de elogios ao filme que assistimos, mas basta alguém se empolgar com a nossa descrição e resolver assisti-lo por nossa causa que a responsabilidade começa a pesar: “Olha, eu gostei, mas talvez não seja seu tipo de história. Vá sem expectativas. É meio longo. Tem uma partezinha devagar, mas, sei lá, acho que vale a pena”.

Um amigo me recomendou um livro sensacional. Segundo ele, a melhor coisa que leu no último ano. Bom, então quero ler também. No dia seguinte, ele largou o livro na portaria do meu prédio, e quando liguei pra agradecer, ouvi: “Talvez tu não goste tanto assim. Comprei pra ti uma edição diferente da minha, o tradutor não sei se é tão bom. Tu não é obrigada a gostar, tá?”

Os episódios da geladeira e do livro, cada um a seu modo, demonstram o quanto ficamos inseguros ao virarmos referência. No caso da geladeira, a única prova que eu tinha de que ela estava amarelando eram as luzes piscantes. Quando elas pararam de piscar, passou a valer apenas a minha palavra. Que solidão.

Quando meu amigo incentivou a leitura do livro, estava expondo sua erudição, já que o autor era um filósofo. Mas no momento em que demonstrei interesse em ler também, ele passou a duvidar do próprio entusiasmo. E se o livro não fosse tão bom no meu parecer? De repente, não era mais o livro que estaria em julgamento, e sim ele. Solidão, também.

Outra: uma amiga resolveu ir a Machu Picchu depois que comentei coisas incríveis sobre a viagem que fiz para lá recentemente. Ai, ai, ai. E se ela passar mal com a altitude? E se achar a comida muito apimentada? E se voltar pensando que me empolgo por qualquer ruína de cartão-postal? Já era: terá perdido a chance de ir para outro lugar mais encantador a seus olhos. Por que fui emprestar os meus?

No fim das contas, tudo o que queremos é ser amados. Por aqueles a quem recomendamos um livro, por quem resolveu viajar incentivado por nós, e, sim, pelo técnico que confirmou que nossa geladeira estava mesmo estragada, contra qualquer evidência.

Falando na geladeira, passa bem. As luzes nunca mais piscaram nem o alarme disparou. A não ser o meu: “não se leve tão a sério, não se leve tão a sério, não se leve tão a sério”.


26 de fevereiro de 2012 | N° 16991
VERISSIMO


O colchonete

– Você mandou me chamar, Dodo?

– Mandei, dona Berenice. Mandei. Por favor, sente-se.

– Algum problema?

– Não, não. Eu só achei que deveríamos conversar sobre o nosso encontro na terça-feira.

– No bloco “Engrena que eu acelero”? Não foi um barato? Acho que nunca me diverti tanto.

– Pois é, dona Berenice. Mas a senhora deve ter notado que eu estava, meio... Qual é a palavra?

– Chumbado?

– Embriagado.

– Você estava ótimo, Dodo! Alegre. Desinibido. É um lado seu que eu não conhecia. Aliás, que ninguém na firma conhecia.

– Você comentou o nosso encontro da terça aqui no escritório, dona Berenice?

– Só comentei. Não contei tudo o que aconteceu. É claro, né Dodo?

– Tudo o que aconteceu?

– Você não se lembra de nada? Do bar? Do fundo do bar? Do colchonete em cima dos engradados de cerveja no fundo do bar? Nada?

– Colchonete?!

- De tudo que nos dissemos e fizemos?

- Defina “tudo”, dona Berenice.

- Tudo! As confidências. As promessas. E o depois.

- O que houve depois?

- Digamos que o colchonete cumpriu seu papel.

- Meu Deus. Eu não sabia que tínhamos chegado ao colchonete.. Um colchonete em cima de engradados de cerveja. Isto não.

- Mas foi lindo, Dodo. Você era outro homem. Não parou nem quando entrou o português do bar e...

- O quê? Entrou um português na história?!

– Ele só foi buscar uma lata de azeite ou coisa parecida. E você não parou. O português entrou e saiu e você continuou. Vupt e vupt. Você, hein Dodo?

– Vupt e vupt. Meu Deus do céu. E as confidências e promessas, dona Berenice?

– O que tem elas?

– Você sabe que um homem bêbado em cima de um colchonete diz qualquer bobagem. O colchonete está na fronteira entre o recato e a exposição total, à autopiedade e ao ridículo. Um homem num colchonete perde todo o escrúpulo e confessa tudo, até o que não fez. E promete o que não pode dar.

– Não se preocupe, Dodo. As confidências eu esqueci, e as promessas eu não levei a sério. Nem a promessa de casamento. Eu sabia que não eram para valer. Afinal...

– O que, dona Berenice?

– Era Carnaval.

– Obrigado, dona Berenice. Obrigado. Pela sua compreensão e pela sua discrição. Vamos fingir que nada aconteceu, e tudo volta ao normal. Inclusive, dona Berenice, vou lhe pedir um favor...

- O quê?

- Volte a me chamar de Dr. Odorico.


26 de fevereiro de 2012 | N° 16991
PAULO SANT’ANA


Cabresto revezado

Esta é a história espetacular de um amigo meu que, por incrível que pareça, não vai se reconhecer nestas linhas.

Meu amigo conseguiu um ardil inimaginável: ele é ao mesmo tempo escravo e senhor de sua mulher. Não sei como conseguiu.

Se de uma parte meu amigo é obrigado por sua mulher a chegar em casa na hora do Jornal Nacional, por outro lado, incansáveis vezes, meu amigo faz viagens com seus outros amigos. Quando não está viajando, faz farras com seus amigos, vai aonde bem quer, se ausenta de casa por longas horas, sob o silêncio resignado de sua mulher.

Ao mesmo tempo em que é subjugado por sua mulher, meu amigo também a subjuga.

Ele conseguiu harmonizar em seu casamento, com rara e complicada sintonia, o modo como escraviza sua mulher, deixando-a pacientemente a esperar que ele chegue de sua larga liberdade, com a maneira que ele tem de ser dominado por sua mulher, submetendo-se fielmente às datas e horários determinados por ela.

Meu amigo é um artista. Ele e sua mulher conseguiram o milagre de mandarem um no outro e ao mesmo tempo serem mandados um pelo outro.

A banca paga e a banca recebe. Um dia é o de meu amigo ser livre, o outro dia é o de meu amigo ser inteiramente submetido por sua mulher.

Tanto o homem que é inteiramente dominado por sua mulher quanto a mulher que é inteiramente dominada pelo marido serão sempre, ambos, infelizes.

Mas meu amigo descobriu com sua mulher uma fórmula estupenda de levar à frente, com felicidade, o seu casamento: ele manda num dia e se submete no outro, alterna obediência com supremacia, sua mulher se sente senhora e escrava ao mesmo tempo. Ele é um rei e um súdito, tudo depende do momento. Há uma hora em que ela é a soberana, há outros momentos em que ele é o dono absoluto dos seus atos e desaparece o domínio de sua mulher sobre meu amigo.

No casamento, como em qualquer outra relação humana, aparece de maneira inevitável a necessidade do predomínio de um sobre o outro.

Como diz um médico meu, alguém tem de manejar o cabresto.

Pois esse meu amigo conseguiu a prodigiosa ciência de revezar o cabresto com sua esposa: uma hora ele domina, outra hora ele é dominado. O senhorio entre os dois é equilibrado, nenhum dos dois se sente humilhado, sabe que, se de uma vez o predomínio é de um, ali adiante será do outro.

Meu amigo desfruta tanto da liberdade quanto da restrição.

Meu amigo e sua mulher dão a todos nós que os observamos de longe a extraordinária lição de como devem se portar os cônjuges, equilibrando a balança dos pratos das relações, que ora pende para um lado, ora pende para outro.

O casamento assim só pode pender para o sucesso.


25 de fevereiro de 2012 | N° 16990
NILSON SOUZA


Os consertos de Hugo Cabret

Ele conserta relógios, brinquedos, engrenagens e vidas. O filme com maior número de indicações para o Oscar, A Invenção de Hugo Cabret, é uma bela metáfora sobre consertos, mais bela ainda porque tem como cenário uma Paris de contos de fadas, que converge para a misteriosa estação de trem onde vive o menino órfão.

É uma história quase infantil, com potencial para acordar todas as crianças que fomos e somos, sem mascarar demasiadamente a realidade de amarguras e desilusões do mundo adulto. Tudo é simbólico nesta aventura em três dimensões, a começar pelos relógios da estação – um lugar de embarques e desembarques, como lembra de modo autoritário e pragmático o agente de segurança que caça crianças abandonadas com a ajuda de um dobermann ameaçador.

Relógios, tempo, embarques e desembarques. Como canta Maria Rita, tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais, tem gente que vem e quer voltar, tem gente que vai e quer ficar. E tem gente que veio só olhar.

Fui só para olhar e me encantei com as histórias dentro da história filmada magistralmente por Martin Scorsese. A fábula cinematográfica fala também de encontros e desencontros, de solidão e amizade, de encanto e desencanto, mas concentra o foco da câmera num tema de nossos dias: a mudança de paradigmas.

No caso específico, a transição do cinema mudo para o cinema falado, com todos os efeitos colaterais que causou para artistas, diretores e para a sociedade da época.

Não é, também, um drama que nos aflige nestes tempos em que a invenção de ontem já é obsoleta e as profissões mais respeitadas se tornam desimportantes da noite para o dia? E os relógios continuam sua marcha inexorável, agora já não mais como mecanismos complexos, mas, sim, como pequenas magias digitais, localizados em todos os cantos e superfícies, do micro-ondas à tela do computador. São eles que nos dizem a todo instante que o tempo castiga quem não se reinventa.

E as crianças, sempre elas, é que detêm o poder de consertar amarguras e de renovar ruínas com as tintas da imaginação e da espontaneidade. Que o digam os avós de todas as idades. Num dos momentos de maior ilusionismo do filme, que não vou contar para não estragar surpresas, um garotinho da plateia suspirou aliviado e gritou bem alto:

– Era outro sonho!

Cada filme, desde o tempo do cinema mudo, é um outro sonho.


25 de fevereiro de 2012 | N° 16990
PAULO SANT’ANA


Escrever todos os dias

Eu não sei se os leitores de Zero Hora já se aperceberam da diferença básica que existe entre mim e vários outros colunistas deste jornal: é que eu escrevo todos os dias e eles escrevem uma ou duas vezes por semana.

Por escrever todos os dias, é que eu já tenho 16 mil colunas nos últimos 40 anos.

Cada coluna que vou escrever corresponde a uma angústia diária: sobre o que irei escrever?

Sendo assim, tenho mais angústias, mas em compensação tenho mais prazeres: o prazer eu sinto quando escrevo uma boa ou ótima coluna.

O Tulio Milman, que também escreve todos os dias, me perguntou a respeito ontem: se eu percebo, antes de ser publicada, que minha coluna será boa no dia seguinte?

Respondi a ele que por vezes percebo que minha coluna será boa, mas há outras vezes que só vejo que ela foi boa depois da repercussão que ela obteve.

Se escrevo mais vezes que os outros, tenho mais chances de me quebrar que os outros.

Em compensação, tenho mais chances de me consagrar que os outros.

Ou será que não? Ou será que, escrevendo todos os dias, as chances que tenho de me quebrar são muito maiores do que as chances de me consagrar?

Acontece que, escrevendo todos os dias, não posso nunca me furtar de escrever, cada dia que passa tem de corresponder a um assunto que eu aborde, não posso, assim, escolher assuntos melhores nos dias intervalares. Rasgou a folhinha e mais uma coluna terá de estar pronta.

Não tem erro, cada dia tem de corresponder a uma coluna. Não tem escape. Raiou o sol e lá vem outra coluna.

Sinceramente, não sei como pude escrever 16 mil colunas neste jornal.

Mas o meu maior feito a este respeito se deu recentemente: tive câncer na rinofaringe. E não deixei de escrever nenhuma coluna durante meu câncer.

E mais: fiz durante 50 dias tratamento cruciante de radioterapia para meu câncer. E durante os 50 dias nunca deixou de ser escrita minha coluna. Isto foi realmente um feito de que me orgulho.

Não sei como pude, durante a radioterapia, escrever todos os dias. E, modéstia à parte, escrever com qualidade.

Deus me fez resistente.

Por que escrevi durante a excruciante radioterapia? Só agora percebo que escrevi durante esse espinhoso tempo porque, se não escrevesse, não suportaria a radioterapia.

Ou seja, sucumbiria à radioterapia se abrisse a coluna e lesse um interino na minha coluna.

Só agora vejo e percebo que um interino na minha coluna é um mal maior do que o câncer.


25 de fevereiro de 2012 | N° 16990
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES


Carnaval e tradição

As tribos carnavalescas estão agonizando em Porto Alegre, tão características que eram. As máscaras, quem usa ainda máscara, evocativas do bal masqué que até Shakespeare aproveitou em Romeu e Julieta? O “sopapo” característico do Carnaval de Pelotas resistiu porque pulou para as orquestras, mas a sua batida tradicional tão rio-grandense se perdeu. Marcava o ritmo do Carnaval gaúcho.

Que fim levaram as marchinhas de Carnaval, os sambas e as marchas-rancho com letra belíssima e música empolgante? Só sobrou A Jardineira, uma canção folclórica na origem. Hoje é só esse entediante rol de sambas-enredo, inexpressivos e repetitivos, com letras pobres e músicas indigentes.

Os “remelexos” de blocos, os que iam à frente de tudo, dançando de uma maneira requebrada e despertando a alegria da multidão, foram substituídos pelos passistas.

A alegria nas ruas eram os blocos de “sujos”, ou “sujos” individuais, com roupas que muitas vezes traduziam uma crítica a uma situação conhecida de todos, às vezes reforçada por um cartaz. Em Pelotas havia os famosos blocos de “dominós”, cujos integrantes se fantasiavam com um grande manto e usavam máscaras. Outro bloco pelotense era o dos “travestis”, pacatos cidadãos que soltavam o seu lado feminino, brincando à vontade.

Não havia profissionalismo no Carnaval. Todos eram autênticos foliões que esperavam o fim do ano para o lançamento na rádio de marchinhas e sambas, muitos dos quais resistem até hoje nos bailes de salão: A Jardineira, Alalaô, O Pequenino Grão de Areia, Chiquita Bacana, Mamãe Eu Quero. Acho que a última grande marcha carnavalesca foi Máscara Negra, do Zé Kéti. Brilhavam artistas como Chico Alves, Carmem Miranda, Orlando Silva, Francisco Carlos, Dalva de Oliveira.

Não havia escolas de samba, mas blocos de Carnaval e algum corso, dos blocos dos ricos. Agora qualquer turista pode pagar por seu ingresso e integrar qualquer escola, desde que para o ensaio nas quadras e a prova da fantasia vença a rígida segurança dos traficantes e prove a sua condição de “folião”.

E vem alguém dizer que deseja introduzir essa prática nos nossos desfiles tradicionalistas de 20 de Setembro! Não tentem botar no nosso desfile um gringo bêbado fantasiado de gaúcho. Senão, vai dar mangaço na avenida outra vez.


25 de fevereiro de 2012 | N° 16990
CLÁUDIA LAITANO


Lições de casa

Como a maioria das mães, tento passar para a minha filha, da maneira menos aborrecida e solene possível, uma espécie de versão pocket de tudo que aprendi ao longo da vida – da receita do arroz perfeito ao sentido mais profundo de ser e estar no mundo.

Não de uma vez só, para não enlouquecer a menina, mas sempre e continuadamente (o que, pensando bem, pode ser um pouco enlouquecedor também...), como se fosse um folhetim em muitos capítulos sobre assuntos tão inabarcáveis quanto o amor e a amizade ou tão prosaicos quanto um palpite qualquer sobre um conflito na escola.

A fantasia nem tão secreta dos pais é a de que nossa experiência pessoal acumulada, passada adiante em versão editada e copidescada, possa funcionar como uma espécie de manual do novo proprietário: “Vida, Modo de Usar (não ligue sem ler as instruções!)”.

Como eu também já fui filha, sei bem o quanto esse tipo de conversa de fundo “edificante” pode na hora soar inadequado, extemporâneo ou simplesmente equivocado, mas o que vale, quando a gente é pai ou mãe, é a aposta no efeito repescagem: à luz de novas e mais complexas experiências, até o comentário aparentemente tolo pode ganhar um novo significado e vir a fazer alguma diferença na vida dos filhos.

Nem tudo o que a gente diz ou pensa vai ser de alguma serventia para eles, mas talvez seja preferível errar pelo excesso do que pela falta.

Educar uma criança inclui transmitir todo um repertório de lições obrigatórias. Há as regras normativas, do tipo certo e errado, que servem como sinais no trânsito da civilização: pare, não ultrapasse. Há as regras de convivência, para que viver em grupo, ou aos pares, seja não apenas viável, mas suave sempre que possível. Há as regras práticas, que protegem contra dedos na tomada, resfriados e arroz empapado.

De resto, o que existe são as variações pessoais, o toque autoral de cada família – uma imensa área livre para o improviso, onde um pedaço qualquer de nós, nosso gosto por viagens ou passeios de bicicleta, pode permanecer para além da nossa própria existência. Ou assim a gente gostaria.

É nesse cantinho das paixões transmitidas de uma geração para a outra que eventualmente se encaixa o interesse pela arte. Filhos de pais que gostam de ler, de ir ao cinema, de ouvir música podem imaginar que a insistência dos pais em torná-los leitores e espectadores qualificados tem a ver com algum tipo de objetivo prático, como arranjar um bom emprego ou ser bem-visto pelos outros, mas na verdade não é nada disso – ou não é apenas isso.

Descobrir a literatura ou o cinema pode não servir para nada mais além de cultivar o espírito e deslumbrar. Mas é exatamente essa capacidade de deslumbramento – sem nenhuma utilidade prática, mas essencial – que muitos pais gostariam de oferecer aos filhos como herança, como um tesouro secreto a ser descoberto no devido tempo.

Por tudo isso, A Invenção de Hugo Cabret, do diretor Martin Scorsese, é o meu favorito neste Oscar. Um filme feito por um senhor de 70 anos, pai de uma menina de 12, a quem ele parece mandar um recado simples, mas precioso: repare bem nas maravilhas que a imaginação pode fazer por você. Uma lição para os olhos e para o coração – para pais e filhos de todas as idades.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


Carlos Heitor Cony

Cinzas e nada mais

Nesta crônica dedicada às cinzas da Quaresma, creio que consegui um recorde de citações disparatadas

Pelo menos na maior parte do Ocidente, seguimos o calendário gregoriano. Feito por um papa, é natural que tenha obedecido à tradição canônica que estabeleceu as principais festas da religião cristã, como a Quaresma e, por conseguinte, o Carnaval, dedicado inicialmente ao "adeus da carne", seguido pela imposição das cinzas, símbolo de penitência e preparação para a grande festa da Páscoa.

Tal como acontece com o Carnaval, somaram-se vários festejos pagãos em sua constituição, da mesma forma que a Páscoa cristã é uma transposição do Pessach judaico.

Neste, os judeus comemoram a libertação do povo de Israel, que sofria o longo cativeiro dos faraós egípcios. Na Páscoa cristã, é a redenção do gênero humano pela morte e ressurreição do filho de Deus na pessoa de Jesus Cristo.

Bem, não era este o meu assunto, que no fundo ainda é uma continuação do Carnaval que acabou. Atribui-se ao cristianismo a metáfora das cinzas, das coisas finitas dentro da cinza maior que é a finitude do próprio homem.

Mas os gregos já tinham suas lendas a respeito, bastando lembrar a Fênix que renasceu das próprias cinzas e, como as rosas de Malherbe, são sempre citadas pela subliteratura universal.

Minhas cinzas são outras, a começar pelo clássico "Agora É Cinza", de Alcebíades Barcelos e Antônio Marçal, gravação antológica de Mário Reis que nunca saiu da estante mais nobre de nossa música popular. "Agora é cinza, tudo acabado e nada mais." Este "nada mais" deve ter alguma coisa a ver com o "Corvo", de Edgar Allan Poe, o "nevermore" que foi traduzido por Fernando Pessoa, Machado de Assis, Mallarmé, Baudelaire e outros cobras da literatura universal.

Mas o Carnaval produz e produziu outras cinzas, inclusive aquelas que ficam nas calçadas depois de esquentarem os tamborins dos blocos e escolas de samba: "Pelas ruas não tem mais nada, nem as cinzas que esquentaram os tamborins estão nas calçadas".

E tem mais: símbolo ou sinal de perda, de coisa que não é mais (novamente o "nevermore", de Poe), há aquele samba gravado por Jorge Veiga, "Existem cinzas ainda no meu coração, que o meu primeiro amor deixou. São cinzas de um grande amor, são cinzas e nada mais que o próprio vento não desfaz".

Bem verdade que para contrabalançar citações eruditas e "fossentas", há a maravilha de um verso do Adoniran Barbosa, "Se me assoprarem eu posso acender de novo". (O verso talvez não seja assim, mas é como eu o guardei na carne e na memória, misturado com todas as cinzas a que tenho direito.)

No Convento dos Capuchinhos, ali no final da via Veneto, em Roma, está enterrado o cardeal Barberini, irmão do papa Urbano 8º. Num período difícil para os romanos, quando os bárbaros saquearam a cidade que era a cabeça do mundo, o que os bárbaros não fizeram, fizeram os Barberini:

"Quod non fecerunt Barbari, fecerunt Barberini". O cardeal está sepultado ali, ele mesmo escreveu o seu epitáfio: "Hic jacet pulvis, cinis et nihil" ("Aqui jaz o pó, a cinza e o nada").

Pó, cinza e nada -a isso ficaria reduzido o famoso cardeal que deu nome a uma das praças principais de Roma. Há que notar, no epitáfio do cardeal, que a cinza funciona como prelúdio do nada -e aí voltamos ao "Corvo", de Edgar Allan Poe: "Nevermore".

Bem, acho que chega. Nesta crônica dedicada às cinzas da Quaresma, creio que consegui um recorde de citações disparatadas, desde o papa Urbano 8º ao Jorge Veiga, passando por Baudelaire, Mallarmé, Machado de Assis, os faraós, o cardeal Barberini, as rosas de Malherbe, Mário Reis, Jesus Cristo, a grande dupla Bidê & Marçal, a Fênix que renasceu, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa e por último, mas não em último lugar, o Adoniran Barbosa, cujo centenário de nascimento estamos comemorando.

Não tomei minhas cinzas; tampouco cometi façanhas imundas que as fizesse merecer. Mas usei as cinzas como introdução ao grande nada.

E por falar neste grande nada, aí vai a última citação, a de T.S. Eliot em seu poema "The Waste Land", em tradução do Ivan Junqueira, esta sim, a citação final: "- Que rumor é este? - O vento sob a porta. - E que rumor é este agora? Que anda o vento a fazer lá fora? - Nada. Como sempre, nada".

Hélio Schwartsman

Clima, impérios e bruxas

SÃO PAULO - Secas moderadas podem ter contribuído para o fim dos maias. Qual o papel do acaso e de forças a ele correlatas, como intempéries e cataclismos, na história?

Um pouco por culpa da tendência de seres humanos de nos colocarmos como centro de tudo, um pouco por excessos da tradição marxista, que só tinha olhos para as relações econômicas, a historiografia passou um bom tempo menosprezando fatores geográficos e climáticos.

A moda começou a ser quebrada com a publicação de obras como a do geógrafo Jared Diamond, que, em "Armas, Germes e Aço" e "Colapso", colocou a ecologia e o clima como explicações centrais para o surgimento e o ocaso de civilizações.

Na mesma linha de pesquisa vão Raymond Fisman e Edward Miguel que, em "Economic Gangsters", atribuem boa parte dos desastres da África aos caprichos do clima. Eles analisaram a relação entre secas e guerras civis e concluíram que o fator climático explica os conflitos até melhor do que as divisões étnicas e religiosas. Para esses economistas, uma queda de 5% no PIB, comum em vários países nos anos de seca, eleva em 50% (de 20% para 30%) o risco de ocorrer uma guerra civil nos 12 meses seguintes.

Fisman e Miguel também acharam correlações mais improváveis, como aquela entre a falta de chuvas e o maior número de mulheres assassinadas por bruxaria na Tanzânia. A deterioração das condições econômicas leva as famílias a sacrificarem alguns de seus membros. A escolha acaba recaindo sobre as "bruxas", isto é, as duplamente vulneráveis: mulheres mais idosas.

Nós, no conforto de nossos supermercados, já nos esquecemos de que, durante a maior parte de sua existência, a humanidade travava uma luta diária pela sobrevivência, na qual pequenas variações, como o volume de precipitações ou o humor do tirano de plantão, podiam revelar-se decisivos para o futuro do grupo.

helio@uol.com.br


24 de fevereiro de 2012 | N° 16989
CÂMBIO INCÔMODO


Mantega volta a prometer ação contra alta do real

O governo ampliou o arsenal para conter a alta do real. Na manhã de ontem, quando a cotação caiu para R$ 1,69, o Banco Central (BC) fez duas compras: uma no mercado futuro e outra no mercado à vista.

Na sequência, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, avisou que o Brasil “não permitirá a apreciação excessiva do real”. A ação deu resultado, e a moeda americana fechou o dia 0,29% mais cara, a R$ 1,711.

A entrada de dólares continua a todo vapor e a moeda acabou negociada, ainda que por pouco tempo, abaixo de R$ 1,70 pela primeira vez desde outubro de 2011. Diante do preço, o BC iniciou a reação: informou que compraria até US$ 2 bilhões pela manhã os contratos conhecidos como swap cambial reverso.

A operação, que equivale à compra de dólares no futuro, não era realizada desde 30 de agosto de 2011. Foram adquiridos US$ 174,7 milhões. À tarde – já com as cotações do real em ligeira alta –, o BC adquiriu mais dólares, dessa vez no mercado à vista. Com as atuações, o BC acumula intervenções em três frentes nas últimas semanas: no mercado à vista, negócios a termo e com o swap cambial reverso.

Ótima sexta-feira. Gostoso fim de semana pra você.


24 de fevereiro de 2012 | N° 16989
ARTIGOS - Jorge Barcellos*


Ciclistas do mundo, uni-vos!

Nos Estados Unidos, uma propaganda ironizava estudantes que iam para a faculdade de bicicleta, mostrando um ciclista sendo ultrapassado por uma bela moça em um carro. Muito criticado, o anúncio, que terminou retirado, encerrava-se com a frase “Deixe de pedalar... comece a dirigir”.

O contrário bem que poderia ser o tema do 1º Fórum Mundial da Bicicleta, a ser realizado em Porto Alegre nos próximos dias. “Deixe de dirigir... comece a pedalar” é a utopia que só pode surgir na sociedade onde o automóvel cobra alto preço por sua existência. Mas, para que o seminário dê frutos e não se transforme em apenas mais um evento da Capital, seus participantes terão de responder a duas questões essenciais.

A primeira é como recuperar a necessidade da velocidade democrática. Quando foi inventado, o automóvel proporcionou a experiência inédita de andar mais rápido que diligências, carruagens, trens e bicicletas. Antes, a velocidade era democrática: todos andavam na mesma velocidade, diz André Gorz.

O carro estabeleceu uma velocidade de deslocamento para a elite e outra para o povo. Mais: ele gerou uma nova forma de alienação, já que, enquanto o ciclista é capaz de consertar seu veículo, o motorista torna-se dependente de especialistas que cobram caro por seus serviços. Num mundo onde todos querem ir a qualquer lugar mais rápido, como colocar a necessidade de ir devagar?

A segunda questão é como transformar o ciclismo em questão política. No passado, no tempo em que a distância entre o mundo onde se vive e o mundo onde se trabalha era menor, a bicicleta era um bem comum e a maioria dos trabalhadores a possuía para trabalhar.

Fazia parte, portanto, dos procedimentos relativos à vida nas cidades – da pólis, daí política – o uso da bicicleta. Paradoxalmente, o que despolitizou o ciclismo foi o seu afastamento das camadas populares, transformado em esporte de elite, e a progressiva transformação do automóvel de bem de elite para bem popular. Hoje, quase todo mundo tem carro mas muitos não têm bicicleta. Tornamos as cidades inabitáveis ao deixarmos de ser proprietários de bicicletas para nos tornarmos consumidores de automóveis.

Mas politizar o ciclismo não é apenas pensá-lo somente no campo das políticas de mobilidade, atual estágio da discussão. É preciso ir mais além, pensar o bicicletar como um novo humanismo – “Pedalo, logo existo” –, como diz Marc Augé.

Não optamos pela bicicleta porque gasta menos energia ou polui menos, argumento produtivista que esquece o mais importante: optamos pela bicicleta porque ela possibilita ao cidadão experienciar a cidade como espaço de aventura, lugar de descobertas, possibilitando às pessoas se encontrarem em vez de ficarem reclusas em suas casas com medo da violência. A bicicleta transforma a vida social, aprende-se a “pedalar junto”, e isto ajuda os cidadãos a tomar consciência de si mesmos e dos lugares que habitam.

Quem diria! O velho sonho comunista encontrou uma forma secreta para retornar, agora sem sangue e sem revolução: a partir de um mundo onde simples bicicletas são de todos, onde podemos pegá-las onde quer que estejamos para deixá-las logo adiante para outra pessoa, reinventamos a ideia de bem comum tão cara à esquerda.

Não é o que as experiências ciclísticas de Barcelona e Paris já mostram? A Revolução Ciclista ainda não se consumou. É preciso fazê-la o quanto antes. Ciclistas do mundo, uni-vos!

*Doutorando em Educação/UFRGS


24 de fevereiro de 2012 | N° 16989
PAULO SANT’ANA


Ares de Luxemburgo

Atualmente, uma pessoa é assassinada no RS a cada quatro horas, disse a notícia relacionada à manchete de ontem em Zero Hora.

E falta uma estatística: quantas pessoas são responsabilizadas por esses homicídios?

Acredito que muito poucas.

Mata-se muito facilmente no RS. As autoridades policiais teimam em dizer que a maioria dos assassinatos entre nós é motivada pelo comércio de drogas.

Se as drogas fossem liberadas, não sei como ficaria a saúde da população, o que sei é que se mataria muito menos gente.

E será que existe grande diferença entre drogas proibidas e drogas liberadas? Será que, se fossem liberadas as drogas, o consumo delas aumentaria assustadoramente? Desconfio que não.

Se as drogas fossem liberadas, todos poderiam consumir drogas livremente. Mas não se consomem drogas livremente agora, assim como está, com elas proibidas?

O fato é que se mata por qualquer motivo com a maior facilidade. Isso nos leva a concluir que as pessoas matam e ficam impunes, na sua grande maioria.

Essa impunidade estimula a que se mate. Qualquer pessoa que tenha interesse contrariado, atualmente, mata ou manda matar.

Cadáveres aparecem todos os dias agrupados, as execuções se sucedem e ninguém põe um basta nessa carnificina.

Mata-se mais agora do que antes do fingido e fracassado desarmamento. E 90% dos assassinatos são praticados com armas de fogo.

O resto fica por conta dos pitbulls e rottweilers.

Chegou em muito má hora o Vanderlei Luxemburgo: digo isto pela resultado do Gre-Nal de anteontem.

Explico: toda vez que o Grêmio for mal, se comparará erradamente Luxemburgo com Roger.

Antes do Gre-Nal, respirei aliviado: Guiñazu não jogaria.

Para mim, o jogador mais importante do Internacional não é D’Alessandro. É Guiñazu.

O Grêmio só obteve aquela facilidade em amordaçar o Internacional anteontem porque Guiñazu não jogou.

Isso, no entanto, não tira o mérito do Grêmio na vitória.

Esse Kleber, que marcou o gol da vitória, é um grande jogador de futebol, estamos diante de um craque.

E não é só pelo seu valor técnico, mas também pela combatividade.

Que grande contratação esse Kleber!

E vale também o elogio à direção gremista por ter trazido Luxemburgo. Esse treinador empresta uma maioridade ao futebol gaúcho. Dias atrás, ele treinava o Real Madrid, agora está no Grêmio, é uma notícia inacreditável.
Bons ventos embalem o Luxemburgo por aqui.


24 de fevereiro de 2012 | N° 16989
CLAUDIA TAJES


Para quem volta, para quem não foi

A migração deixaria as andorinhas espantadas. Assim como se foram tão logo o calor se combinou às férias, milhares de gaúchos voltam agora para as suas casas. Bem-vindos sejam. Nós, os que seguramos as pontas no verão mais suado das últimas décadas, estamos aqui, no ar-condicionado, para recebê-los.

É um movimento migratório curioso. Na pressa de abandonar a civilização, os gaúchos saem todos ao mesmo tempo, e param todos ali na estrada. Já o retorno se dá em horários mais espraiados, conforme o dia em que cada um precisa reassumir a antiga personalidade.

Novamente de terno, o chefe que você viu de sunga vermelha e sendo pacientemente enterrado na areia pelos filhos em breve perderá o ar relaxado. Na próxima bronca, não o recorde dessas amenidades. Para um chefe, sunga vermelha e paciência são coisas para cair no esquecimento, ao menos até as próximas férias.

Ainda sobre a migração de janeiro e fevereiro, outra particularidade: é fincar o pé em território urbano, que o gaúcho se dirige ao supermercado. Não existe a hipótese de chegar da praia sem passar pelo súper. Quem vinha comprando com tranquilidade por certo estranhará as longas filas e os carrinhos estourando nas caixas onde se lê “máximo de 10 itens”.

Então, quando você pensar que isso é chato, baterá com a cabeça nos ovos de Páscoa que surgiram do nada para lotar o espaço aéreo das lojas. Se tiver encontrado uma vaguinha para estacionar, bem entendido.

Feitas as contas, o verão 2012 termina com saldo positivo. O número de mortos em acidentes e afogamentos diminuiu. Porto Alegre está com a maior parte das calçadas recuperadas, exigência da prefeitura que contou com a compreensão dos cidadãos.

Também foi um verão em que não faltaram bons shows, filmes, espetáculos e programas para quem ficou torrando em temperaturas que não se deve chamar de senegalesas para não magoar o pobre do Senegal. Sem falar nos beijos dados, nos novos amigos, nas novas músicas, nos novos amores, nos amores que resistiram, nos bebês que vêm aí. Como nascem bebês depois de um verão.

Quem volta e quem sequer foi, finalmente todos estão na mesma.

Aos remos.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012



23 de fevereiro de 2012 | N° 16988
GRÊMIO


Grêmio patrola

Em resposta ao favoritismo do Inter e diante da chegada de Wanderley Luxemburgo, o Grêmio joga melhor no clássico e vai decidir com o Caxias uma das semifinais da Taça Piratini no Estádio Centenário no domingo

Nada como um Gre-Nal. O Grêmio passou da crise profunda à alegria extrema na Quarta-Feira de Cinzas. Venceu o Inter por 2 a 1 no Beira-Rio, garantiu vaga na semifinal da Taça Piratini. Hoje começa a Era Luxemburgo com a melhor atmosfera possível.

Faltou gente no Beira-Rio molhado pela chuva. Mas quem foi acabou brindado com um bom Gre-Nal.

Todos esperavam um Grêmio esgualepado pela crise. E um Inter confiante pela justa badalação das últimas atuações. Foi o contrário. O Grêmio esteve consciente de cada passo em campo.

O Inter demorou a se dar conta disso. Parecia assoberbado, esperando que o clássico se resolvesse com o passar da noite. Foi engolfado pelo Grêmio. Roger armou triângulos pelos lados: Gabriel, Souza e Moreno na direita; Julio Cesar, Léo Gago e Kleber, na esquerda. E ainda havia Marco Antônio, correndo ora pela direita, ora pela esquerda, mas sempre livre.

Com um tripé firme atrás, formado por Gilberto Silva, Naldo e Fernando, o Grêmio avançou. Léo Gago e Souza passavam expressos diante da complacência de Oscar, D’Ale e Dagoberto.

Havia um latifúndio entre o meio e a zaga vermelhos. Ocupado pelo Grêmio, é claro. Aos sete, Gilberto Silva cabeceou livre na área; aos 14, Leo Gago entrou livre e cruzou, mas Índio salvou; aos 15, Moledo derrubou Kleber quase na área. Marco Antônio cobrou, Muriel salvou, Léo Gago pegou o rebote de primeira, a bola bateu no poste, nas costas do goleiro e entrou.

Eram 16 minutos e nada mais justo do que o 1 a 0. Houve muxoxos quando Damião tentou jogada de efeito. Do outro lado, o Grêmio tramava e chutava, soberano. Acabou traído. Aos 27, Dagoberto roubou de Fernando, atravessou o campo e lançou Damião livre, que encobriu Victor e empatou.

O gol foi um presente. Que energizou o Inter. Dorival recuou Oscar, colocou Bolatti para auxiliar Elton e até equilíbrou. Ainda assim, o Grêmio seguiu perigoso. Muriel salvou gol de Marco Antônio. Antes do intervalo, o Gre-Nal teve o de sempre: lance polêmico, em falta em Sandro Silva na risca da área, e empurrões entre Kleber e D’Ale, lúcido ao analisar o que via:

– Tivemos o empate, até então não merecido. Melhoramos depois.

Dorival foi mais incisivo:

– Ficamos aquém do esperado, sem posicionamento defensivo algum.

O Inter até voltou mais ativo do intervalo. Nada mais. O Grêmio seguiu no comando. Aos 13, Kleber chutou cruzado. Aos 20, tabelou com Marco Antônio e colocou na saída de Muriel. Era o 2 a 1.

Dorival radicalizou. Trocou Sandro e Dagoberto por Jô e João Paulo. Só conseguiu resultado aos 41. João Paulo cruzou, Damião arrematou, Victor fez defesa espetacular. Era o primeiro chute a gol do Inter no segundo tempo. Aos 45, houve pênalti reclamado em toque de Gabriel. Aos 46, Oscar perdeu livre na área. Pouco para quem planejava vencer a Taça Piratini e deixar o returno exclusivo à Libertadores.

leonardo.oliveira@zerohora.com.br


23 de fevereiro de 2012 | N° 16988
ARTIGOS - Jocelin Azambuja*

Educação, uma bomba-relógio

Estamos iniciando mais um ano letivo. Pais e estudantes entusiasmados, pensando no futuro, nas boas perspectivas que a educação pode trazer para o futuro de todos. Mas, ao pensar nele e verem as notícias, todos ficam mais temerosos, pensando, mas que futuro?

As notícias que circulam são as mais preocupantes: o governo federal fez cortes no orçamento, reduzindo ainda mais as poucas verbas da educação. O mesmo governo criou um piso nacional de salários para os professores, que merecem ter o dobro do piso, mas não deu a fonte de recursos para os governos municipais e estaduais pagá-los.

Os dados fornecidos, tanto pelo MEC quanto por ONGs e Organismos Internacionais, mostram que a cada ano a qualidade da educação brasileira decai. O Brasil não avança no IDH porque ocupa os último lugares em educação entre as nações mundiais.

A educação que tínhamos com qualidade há 50 anos hoje é simplesmente uma lembrança do passado. Os empregos que exigem qualificação no país não são preenchidos, porque faltam pessoas qualificadas para ocupá-los. O país não consegue avançar mais por falta de educação de seu povo. O investimento em educação do país, que deveria ser de 11% a 12% do PIB, não chega a 5%.

Os professores, que nas décadas passadas eram vistos com orgulho pelo povo, hoje são vistos como coitados, que ganham salários miseráveis, que foram engolidos por políticas públicas erradas, com honrosas exceções em um ou outro município.

Sabemos que o salário não é a única causa do fracasso da educação, mas, quando vemos concursos oferecendo salários iniciais de R$ 10 mil para um médico, R$ 15 mil para um juiz, promotor ou defensor público, R$ 7 mil para um engenheiro, ou R$ 5 mil para um técnico em informática, e por aí segue (todos são justos), para um professor oferecem de R$ 600 a R$ 1.050 para aquele que formará o futuro cidadão, que lhe dará educação, que o transformará num ser qualificado para ascender nos mais altos cargos.

Sinto vergonha, como cidadão, de ver oferecerem salários tão aviltantes, ao mesmo tempo que se veem os pais dizerem aos filhos: Deus me livre ter um filho professor(a)!!! Lembram quando esta escolha era um orgulho para uma família. Como me orgulho de ter uma filha professora!

Enquanto a sociedade brasileira não se posicionar efetivamente em defesa da educação, que não pertence aos partidos políticos que a gerenciam a cada quatro anos, mas sim ao povo, a qualidade a cada dia diminuirá e o futuro dessas gerações e do país estará comprometido, pois não conheço uma nação que não tenha priorizado a educação de seu povo e se tornado uma grande nação.

Vivemos uma ilusão, se não desarmarmos esta bomba-relógio, ali adiante ela vai explodir e com ela o nosso futuro como povo e país. Não há economia que sobreviva com um povo sem educação. Você vai deixar explodir essa bomba ou vai reagir?

*Advogado, conselheiro da ACPM-Federação