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quinta-feira, 1 de outubro de 2009
NINA HORTA
Por que sentimos saudade?
A pensão não é como o hotel que anula a casa. É a casa continuada, sedutora por ter mudado de lugar
DONIZETE GALVÃO , amigo poeta, me dá a ideia de escrever sobre a comida das pensões familiares. Diz ele que existem ainda muitas na Mooca e já comecei um plano de visitá-las. Puxei também pela veia memorialista, que é aquela de que os leitores mais participam.
E parei para me perguntar: por que gostam? Homens e mulheres correm ao baú das memórias e soltam suas lembranças. Há casos, como o do mangarito, que precisei abandonar e unir os leitores entre si, num tipo de Orkut do mangarito.
Qual a explicação do amor pelo passado? Imagino.
Primeiro, é uma coluna de comida, lugar privilegiado -a casa, o real, o virado para dentro, circunscrito.
Somos nós por dentro, e é a partir desse núcleo já formado e seguro, debaixo de um teto, que nos ligamos a outros espaços abertos, alternativos, que vão compor nossas vidas.
Um dos primeiros espaços alternativos são as férias. Pela estrada de Santos. O carro fervendo. Às vezes em hotel, às vezes em pensão ou casas alugadas. A pensão não é como o hotel que anula a casa. É a casa continuada, extremamente sedutora por ter mudado de lugar.
Em Santos, eram geralmente casas velhas, bonitas, com entrada de areia e pedriscos, palmeiras e plantas de raízes grossas, levando a um terraço que acessava a casa pelos dois lados.
Muitas portas, de madeira grossa com várias demãos de tinta a óleo.
E não era um gerente que administrava aqueles quartos de pé direito alto, aquele cheiro de curry indiano que tomava as tardes com seu perfume. (Até hoje não sei de onde vinha, talvez de umas palmeiras pequenas, comuns.
Às vezes, numa esquina qualquer, sou invadida por aquele cheiro que logo se liga à maresia, à areia.)
Nas vísceras da pensão corriam mundos que não conhecíamos.
Eram tantos segredos novos sobre os quais nem falávamos, só sentíamos, por falta de linguagem disponível, vidas enterradas, violências, amores, tudo embrulhado num cheiro fugaz de mofo de praia. Casal em lua de mel nos boxes de chuveiro do quintal, ele fogoso de desejo, ela impedindo qualquer avanço, aos soluços. A filha da dona da pensão, descolada, afinal era a casa dela, o mar e a areia seu quintal.
Comandava um jogo de facas afiadas emprestadas da cozinha que deveríamos espetar de longe na areia úmida. Eu me esqueci das regras. Se me lembrasse, acho que seria uma mulher totalmente feliz, morando em Santos e jogando o jogo da faca. E o marinheiro da Marinha Mercante que morava no chalé dos fundos quando estava em terra, um espécime muito masculino, grande e forte com bigodes de pirata e uma aura de contrabando e pecado.
Cheirava a tabaco e respondia a contragosto, como que receoso de estar ali conversando conosco, as perguntas sobre o mar.
A mesa do buffet não chegava a impressionar, baixela gasta, a luta por uma finura perdida nos pequenos trincados da louça. As horríveis travessas de bife acebolado, o purê floreando à volta, a surpresa de um chucrute, o agrado de um peixe assado, a revelação de uma alcachofra à judia, a tradição de um pudim de claras. E de sobremesa maior os lentos passeios até a ponte pênsil.
Embaixo dela, vendiam uma bananada retangular, acabada de fazer, fininha, com açúcar cristal por cima. Os cachos de bananinha ouro mais doces, os baiacus pescados inchando a barriga.
Tudo brilhava de um brilho novo, visto sob a perspectiva das crianças que tentavam entender os mundos diferentes de suas realidades caseiras. E é dessa época, e não das comidas, que temos saudade.
Os meninos começavam a mapear o mundo, o lugar, a história, os acontecimentos e nós, meninas, mapeávamos a subjetividade, ligadas no corpo e no desejo, no labirinto do humano, real e fantasia agarrados, recheando um doce de mil folhas.
ninahorta@uol.com.br
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