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sábado, 3 de outubro de 2009
Isabela Boscov - divulgação - GLÓRIA FEITA DE SANGUE
Tarantino na idade da razão
Em Bastardos Inglórios, uma unidade voluntária de soldados judeus espalha o pânico entre os nazistas na França ocupada. É uma fantasia típica de Quentin Tarantino - mas, da escrita soberba à escolha dos atores excelentes, denota o avanço notável do diretor rumo à maturidade pessoal e artística
Eli Roth, como "O Urso Judeu", e Brad Pitt, como Aldo "O Apache" Raine, dois dos bastardos inglórios: sotaque caipira e nazistas escalpelados para desestabilizar a França sob domínio alemão
Em 1941, diante de uma pequena casa de fazenda, em algum lugar montanhoso da França, o sol brilha, os sinos das vacas são ouvidos ao longe e o pai corta lenha, enquanto a filha pendura a roupa no varal. Pelo lado do lençol que se levanta com o vento, porém, ela vê um grupo de soldados vindo pela estrada, e imediatamente esse quadro tão pitoresco de rusticidade ganha um caráter diverso.
Em vez da paz rural, o que se percebe agora é o isolamento da casa e quanto o pai e suas três filhas estão indefesos ali. Ajuda muito que a trilha escolhida para a cena seja um trecho original de Ennio Morricone para os faroestes-espaguete de Sergio Leone, capaz de anunciar como nenhuma outra coisa jamais composta para o cinema a solidão e o perigo.
Mas os enquadramentos exímios e o tempo impecável em que transcorre essa sequência de abertura de Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, Estados Unidos/Alemanha, 2009), que estreia no país na próxima sexta-feira, são obra e graça de Quentin Tarantino - tanto eles como a destreza com que o fazendeiro francês e o tenente-coronel alemão Hans Landa, que acabou de chegar com seus soldados, vão descrever círculos um em torno do outro, num enfrentamento que tem como objeto o paradeiro de uma família judia, e em que as armas serão um copo de leite, dois cachimbos, as três meninas e o domínio de ambos os personagens do inglês e do francês.
Na maneira como Tarantino retrai e prolonga o tempo previsto para chegar ao desfecho, essa abertura é eletrizante. E ilustra também a distância que o diretor vem percorrendo rumo à maturidade, em um caminho já indicado na segunda parte de Kill Bill.
Tarantino é capaz, agora, de imaginar não só um jogo entre dois personagens, mas um porquê para ele que vá além de suas contingências narrativas. Consegue ouvir a beleza de um diálogo travado, não meramente disparado. E aprendeu a apreciar a utilidade emocional da pausa e dos pequenos milagres que os bons atores podem proporcionar.
O pouco conhecido Denis Menochet, que interpreta o fazendeiro, é excelente, e com cada pequeno gesto acumula mais algum dado sobre a vida e o passado de seu personagem, ainda que nem uma palavra se diga sobre eles. E o ainda menos conhecido Christoph Waltz, que faz o nazista, é espetacular: um ator de precisão absoluta, que rouba o filme com a anuên-cia do diretor - e dos outros atores, igualmente galvanizados por sua performance.
O tenente-coronel Hans Landa, assim, será ainda mais essencial para o filme do que os próprios bastardos inglórios - uma unidade especial de soldados judeus voluntários, que penetram na França ocupada para assassinar nazistas com selvageria e dessa forma espalhar o pânico.
Liderados pelo tenente Aldo "O Apache" Raine (Brad Pitt), um matuto do Tennessee com um sotaque caipira mais espesso que melaço e o hábito de escalpelar suas vítimas, os bastardos são uma criação típica de Tarantino (que, claro, não deixou de ser ele mesmo): um grupo de homens que se comunicam por meio de frases de efeito - bom efeito, aliás - e se dedicam à violência com prazer, sem pesar nem drama de consciência.
Quando eles estão em cena, o filme adquire continuidade com os outros do diretor em tema, estilo e volume bruto de sangue. Quando não, Bastardos Inglórios assinala uma espécie de ruptura.
Em um processo análogo ao do canadense David Cronenberg, que depois de explorar a fundo as possibilidades da escatologia se renovou com o classicismo de Marcas da Violência e Senhores do Crime,
Tarantino estuda aqui as propriedades desestabilizadoras da elegância. Cada ato do filme agrupa um determinado número de personagens em um cenário delimitado - uma taverna, um cinema, uma mesa de restaurante. Todos tratam de alguém dissimulando e correndo grande risco; mas os duelos são travados por meio de insinuações.
Assim, a estrela de cinema e agente dupla Bridget von Hammersmark (a alemã Diane Kruger, que depois de quase afundar com Troia hoje só faz brilhar) tem de colocar aliados e alemães em volta de uma rodada de bebidas sem que ninguém se traia, e de forma a que aquilo que tem de ser descoberto o seja.
A judia disfarçada Shosanna (Mélanie Laurent), por sua vez, tem de repudiar as atenções insistentes de um herói de guerra nazista (Daniel Brühl) sem antagonizá-lo - e ambas, em momentos diversos, terão de sobreviver aos ataques de cordialidade, efusão e malevolência do tenente-coronel Landa. Tão fabulosa é a escrita dessas cenas que a mera menção a um copo de leite causa uma vertigem de medo.
Bastardos Inglórios, contudo, não é um filme sobre a II Guerra. Não é nem mesmo uma história fantasiosa passada na II Guerra, já que trata de dois complôs paralelos para pulverizar, literalmente, o alto-comando nazista.
É um filme passado em todos os outros filmes já feitos sobre o tema, com vários elementos dos noir dos anos 30 e dos faroestes de John Ford e Sergio Leo-ne acrescidos à sua encenação.
É um filme que pertence só à história do cinema, não à outra, a mais ampla. Mas, como no segundo Kill Bill, Tarantino mostra que descobriu a existência de outro mundo para além desse território imaginário - e que entendeu que, quanto mais se alimentar dele, mais verossímil e envolvente será sua fantasia.
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