sexta-feira, 2 de outubro de 2009



02 de outubro de 2009 | N° 16112
DAVID COIMBRA


Viver em Picada Café

Deve ser bom viver em Picada Café. Ganhei uma garrafa de suco de uva de Picada Café quando lá estive, sexta passada, participando da Feira do Livro da cidade. No sábado, servi três dedos do suco para o meu filhinho Bernardo numa caneca de plástico, ele sorveu um gole e vi seus olhos negros coruscando, e ele abriu uma boca azul, e disse:

– Quelo mais, papai!

Em dois dias, o Bernardo secou a garrafa. Suco feito em casa, uvas amassadas pelas mãos calosas das avós, que delícia. Em Picada Café você caminha pela calçada e sente o cheiro do pão quente que está sendo tirado dos fornos das cozinhas. Em Picada Café as mulheres preparam elas mesmas o schmier que os filhos corados passam no pão que elas tiraram do forno.

O motorista que a prefeitura de Picada Café designou para me acompanhar, o Noll, contou que acorda todos os dias às cinco e meia da manhã, e aí, antes que o sol se levante atrás do Morro Reuter, prepara uma substanciosa batida de mamão, ou de abacate, ou de maçã, ou de qualquer outra fruta que ele colhe do pomar de seu próprio quintal, e bebe a batida com gosto, e sai para o trabalho revigorado.

Na volta para Porto Alegre, Lizandra, a esposa do Noll, foi junto no banco detrás, ela, uma garrafa térmica de dois litros cheia de água quente e uma cuia de chimarrão, todo o equipamento para o marido manter-se alerta na estrada durante a noite. A certa altura, Lizandra perguntou:

– Tu já foste assaltado em Porto Alegre?

Quando respondi que não, ela se surpreendeu. Ou seja: a violência urbana é uma lenda em Picada Café, algo vagamente assustador que ocorre em regiões remotas do planeta. E, de fato, a gente de Picada Café tem a naturalidade dos espíritos desarmados. Das pessoas que não sentem medo das outras pessoas.

Uma das picadenses (é isso?) que me emocionou com essa naturalidade foi Priscila, menina de uns 14 anos de idade, os cabelos negros, o rosto moreno luzindo de purpurina, o sorriso sem fim. Apresentou-me uma pilha de livros para autografar, disse que adora ler. Fiz as dedicatórias com carinho especial, sobretudo depois que ela fez certa confissão acerca do programa da Rádio Atlântida do qual participo:

– Sabe por que eu gosto mais de ouvir o Pretinho Básico do que todas as outras pessoas?

– Não faço ideia – sorri.

– Porque o meu pai se separou da minha mãe e está morando em Porto Alegre. Aí, nós combinamos de sempre ouvir o programa. Assim, todos os dias, sei que eu e ele estamos fazendo a mesma coisa. E sinto menos saudade.

Não cheguei a me surpreender, mas um pouco, só um pouco, fiquei decepcionado. Porque a história de Priscila mais uma vez confirmou que em parte alguma, nem em um lugar em que o ritmo da vida é o das avós que extraem com as próprias mãos o sumo das uvas que darão de beber aos netos, em nenhuma parte, enfim, o ser humano está a salvo da discórdia e da desarmonia. Que, afinal, são a razão de todo o mal.

Pena que o pai da menina Priscila não vive em Picada Café. Deve ser bom viver em Picada Café.

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