sábado, 31 de outubro de 2009



01 de novembro de 2009
N° 16142 - MARTHA MEDEIROS


O último a lembrar de nós

REcentemente li Rimas da Vida e da Morte, do excelente Amós Oz, que narra os delírios de um escritor que, ao participar de um sarau literário, começa a olhar para cada desconhecido na plateia e a criar silenciosamente uma história fictícia para cada um deles, numa inspirada viagem mental. Lá pelas tantas, em determinado capítulo, o autor comenta algo que sempre me fez pensar: diz ele que a gente vive até o dia em que morre a última pessoa que lembra de nós.

Pode ser um filho, um neto, um bisneto ou um admirador, mas enquanto essa pessoa viver, mesmo a gente já tendo morrido, viveremos através da lembrança dele. Só quando essa pessoa morrer, a última que ainda lembra de nós, é que morreremos em definitivo, para sempre. Estaremos tão mortos como se nunca tivéssemos existido.

Pra minha sorte, tive poucas perdas realmente dolorosas. Perdi um querido amigo há mais de 20 anos, e perdi uma avó que era como uma segunda mãe. Lembro deles constantemente, sonho com eles, busco-os na minha memória, porque é a única homenagem possível: mantê-los vivos através do que recordo deles.

Daqui a 100 anos, ninguém mais se lembrará nem de um, nem de outro, eles não terão mais amigos, netos ou bisnetos vivos, eles estarão definitivamente mortos, e pensar nisso me dói como se eles fossem morrer de novo.

Aquele que compõe músicas, faz filmes, escreve livros, bate recordes ou é um Pelé, um Picasso, um Mozart, consegue uma imortalidade estendida, mas, ainda assim, será sempre lembrado por sua imagem pública, não mais a privada, não mais a lembrança da sua voz ao acordar, da risada, do bom humor ou do mau humor, não mais daquilo que lhe personificava na intimidade.

Serão póstumos, mas não farão mais falta na vida daqueles com quem compartilharam almoços, madrugadas, discussões, já que essas testemunhas também não estarão mais aqui.

Alguém me disse: se você acreditasse em reencarnação, nada disso te ocuparia a mente. De fato, não acredito, e mesmo que eu esteja enganada, de que me serve a eternidade sem poder comprová-la? Se sou um besouro reencarnado ou se já fui uma princesa egípcia, que diferença faz? Minha consciência é que me guia, não minhas abstrações. Sou quem sou, sou aquela que pode ser lembrada. Não me conforta ser uma especulação.

É provável que ainda não tenha nascido aquele que será o último a me recordar, a rever minhas fotos, a falar bem ou mal de mim. Nem tive netos ainda. Qual será a data de minha morte definitiva? Não será a do meu último suspiro, e sim a do último suspiro daquele que ainda me carrega na sua lembrança afetiva – ou no seu ódio por mim, já que o ódio igualmente mantém nossa sobrevivência. Cafajestes e assassinos também se mantêm vivos através daqueles que lhes temeram um dia.

Nessa véspera de Finados, queria fazer uma homenagem a ele: ao último ser humano a lembrar de nós, a ter saudade de nós, a recordar nosso jeito de caminhar, de resmungar, o último a guardar os casos que ouviu sobre nós e a reter nossa história particular.

O último a pronunciar nosso nome, a nos fazer elogios ou a discordar de nossas ideias. O último a permitir que habitássemos sua recordação. Bendita seja essa criatura, que ainda nos manterá vivos para muito além da vida.

Bendita seja essa criatura, que ainda nos manterá vivos para muito além da vida

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