sábado, 31 de outubro de 2009



31 de outubro de 2009 | N° 16141
CLÁUDIA LAITANO


O elogio da lentidão

Em um comovente discurso durante a inauguração de uma biblioteca do MST, no interior de São Paulo, há pouco mais de três anos, o ensaísta e crítico literário Antonio Candido, já perto de completar 90 anos, ousou contrariar um dos clichês mais universais da nossa época:

“Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamin Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro.

Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo; esse tempo pertence a meus afetos, é para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis: isso é o tempo.

E justamente a luta pela instrução... é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’. As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada... o amor pelo livro nos refina e nos liberta de muitas servidões.”

A psicanalista Maria Rita Kehl, que esteve em Porto Alegre esta semana como palestrante do seminário Fronteiras do Pensamento, já havia começado a escrever um ensaio sobre a relação entre o modo como vivemos neste comecinho de século 21 e a explosão do número de casos de depressão no mundo inteiro quando topou com a frase de Antonio Candido e teve um “clique teórico”.

No livro O Tempo e o Cão, lançado este ano pela editora Boitempo, a psicanalista desenvolve aquele “clique” mostrando que a pressa para tudo dos dias de hoje, o horror que temos a qualquer tipo de perda de tempo e o hábito recente de não nos desconectarmos do trabalho e das atividades ditas “produtivas” nem mesmo durante as férias estão produzindo o caldo onde a depressão se desenvolve.

A depressão, que pode ser definida, grosso modo, como falta de vontade para fazer qualquer coisa, seria uma espécie de reação psíquica ao excesso de coisas que somos cobrados a fazer o tempo todo (inclusive quando deveríamos estar apenas nos divertindo).

O sujeito deprimido pula do trem em movimento da vida contemporânea e fica à margem dos acontecimentos – não por escolha própria, mas por falência geral da engrenagem interna que o faz funcionar no ritmo exigido.

A falta de tempo para pensar na morte da bezerra, para ver a grama crescer, para namorar sem olhar para o relógio, tudo isso, e a sensação de que devemos sempre estar envolvidos em algo que vá servir para alguma coisa (nem que seja contar para os amigos do Orkut e do Twitter como vivemos a vida intensamente), estão criando a supremacia da vivência sobre a experiência.

Enquanto a vivência produz sensações imediatas e passageiras, a experiência é o que nos transforma, porque tivemos tempo para absorvê-la e refletir sobre ela.

Antonio Candido tem toda razão: tempo não é dinheiro, é o tecido da vida. Não dá para guardar, deixar para os netos ou transformar em bens imóveis. É pessoal e intransferível, e deveríamos saber usá-lo sem culpa – até mesmo quando não estamos fazendo nada.

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