domingo, 18 de outubro de 2009



DANUZA LEÃO

Só às vezes

Difícil a tal coerência, quando se trata de nosso sono, da nossa vida. Mas é preciso pensar no bem do país
GENTE LUTA pelas conquistas sociais, pensa no bem geral, na justiça entre os homens -mas até que ponto? Até onde esses ideais não interferem em nossos interesses pessoais, claro.

Numa eleição você escolheu seu candidato por razões precisas: entre outras, ele prometeu lutar para que as mulheres tivessem o direito de ficar quatro meses em casa depois do parto.

Agora, seja sincera e diga o que sente, no fundo do coração, quando sua empregada, que você adora e trata tão bem de suas crianças, comunica que está grávida.

Fica feliz ou pensa, lá no fundo, que ela não precisava inventar esse filho logo agora? (O bebê vai nascer nos primeiros dias de dezembro, deixando você sozinha no Natal, no Ano Novo e no Carnaval, e ainda por cima nas férias).

Quando você vai a uma festa daquelas, no sábado, e domingo às 9h da manhã, bem na porta de sua casa, estaciona um caminhão de som lutando pelos direitos dos deficientes, com direito a muitos discursos e muito samba, dá para dizer o que passa pela sua cabeça ou é melhor ficar calada, para não ser tachada de nazista?

Num país com tantas desigualdades sociais, quem pode, como você, comprar ingresso para ver seu artista predileto numa casa de shows é uma pessoa privilegiada; e nada mais digno de aplausos do que o projeto cultural que prometeu instalar em alguns pontos da cidade pequenos palcos onde aos sábados, domingos e feriados cantores se apresentarão.

Um desses palcos é a 50 metros de sua casa, e todo fim de semana, enquanto a galera vibra, canta e dança, você, que trabalha a semana inteira e tudo o que queria era silêncio para ler um livro em paz, e que votou nesse candidato exatamente porque ele prometeu levar alegria às ruas, amaldiçoa o evento ou fica feliz, vendo o povo contente nas ruas?

A Linha Vermelha é uma maravilha. Uma maravilha, sim, e palmas para tudo que melhora nossa cidade: palmas, bem entendido, quando você vai para o aeroporto, toda feliz, pegar seu avião para Nova York, ou rumo a Petrópolis, passar o fim de semana no sítio.

Mas num belo dia de sol, você percebe que não pode ir à praia porque a Linha Vermelha -oh, surpresa- tem uma mão que vai, mas também tem uma que vem, o que significa que na areia não vai encontrar nem 50 cm de espaço para se sentar -e deitar, nem pensar; você pensa o quê? Melhor nem falar.

Aquela praia quase particular pertinho de Angra, de dificílimo acesso e pela qual você pagou uma fortuna, parecia toda sua; mas um dia aparecem cinco pessoas e armam uma barraca a 500 metros de sua casa.

Ninguém jogando futebol, fazendo churrasco, ou tomando banho de mar pelado, todos na mais perfeita paz; e você, que votou no PV achando que o mar é um bem de todos, começa a pensar seriamente em mandar subir uma cerca eletrificada para desfrutar do paraíso sozinho com seus amigos. Oh, vida.

Difícil a tal coerência, quando se trata de nosso sono, da nossa casa, dos nossos filhos, da nossa vida. Mas é preciso pensar no bem do país, no bem dos que têm muito menos do que você; será pedir muito?

Naquela manhã em que o samba impediu você de dormir, quanta gente se divertiu -e não é bom saber disso? E sua babá, que está feliz porque vai ter um filho; puxe pela memória e lembre como você ficou, quando soube que ia ter o seu.

Mesmo que você não seja uma Madre Teresa de Calcutá, deixar a bondade vencer a maldade que temos juntinhas, no mesmo coração, faz bem. Tente, pelo menos às vezes.

danuza.leao@uol.com.br

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