sábado, 10 de outubro de 2009



11 de outubro de 2009 | N° 16121
DAVID COIMBRA


Ó mar salgado!

Fernando Pessoa não se contentava só com a sua vida. Tinha de criar outras, e criou. Inventou pessoas, deu-lhes nomes, biografias e gostos próprios. Eram todos poetas, cada qual com seu estilo de versejar.

Publicaram livros, granjearam admiradores, fizeram sucesso. Eram os seus “heterônimos”. Não é o mesmo que pseudônimo. Pseudônimo é um nome falso. Um autor escreve algo e publica sob assinatura diferente.

Simples. Heterônimo é mais sofisticado. Hetero vem do grego, e quer dizer “outro”. Fernando Pessoa, ao criar um heterônimo, criava outro indivíduo. Alguns até morrer, morriam. Um deles, chamado Ricardo Reis, não morreu. Ou, pelo menos, não teve a data da sua morte estabelecida por Fernando Pessoa.

Saramago encarregou-se disso ao escrever o romance “O ano da morte de Ricardo Reis”. Assim, um dos heterônimos de Fernando Pessoa sobreviveu a Fernando Pessoa.

O poeta mesmo, de carne, osso, óculos e bigodinho, o chamado “ortônimo”, morreu em 1935, aos 47 anos de idade. Nas horas derradeiras, ele chamava o nome de seus heterônimos. Fico imaginando a cena entre poderosa e comovente: o poeta clamando pela presença dos poetas que ele tinha inventado. Mas, no último momento, Fernando Pessoa não chamou por ninguém, real ou imaginário. Exalou o suspiro derradeiro proferindo uma enigmática frase em inglês:

– I know not what tomorrow will bring.

“Eu não sei o que o amanhã trará”.

Justo Fernando Pessoa, que dizia que a língua portuguesa era a sua pátria, como bem lembrou Caetano Veloso em um de seus clássicos.

Seis meses antes de proferir esta frase misteriosa, Fernando Pessoa escreveu um poema, que, como a frase e como os seus heterônimos, se presta a várias interpretações. O título é “Mar Português”:

Ó, mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

Leia e releia para apreciar a genialidade dos versos, para beber de todas as suas possibilidades. Já encontrei alentados textos com exegeses desta poesia imortal. Eu aqui tenho o meu naco preferido. É seu trecho mais célebre, no qual Pessoa pergunta se valeu a pena tamanho sacrifício, para em seguida ele mesmo responder que tudo vale a pena, se a alma não é pequena.

Portanto, o choro das mães pelos filhos que se perderam no oceano, os filhos que rezaram em vão pelo retorno de seus pais, as noivas que não se casaram porque os noivos jamais voltaram, tudo isso valeu a pena para que Portugal realizasse o sonho de conquistar o mar. É um canto à ousadia, à aventura, uma ode ao inconformismo, um elogio a quem faz.

E isso é o mais importante: fazer.

Sou sempre a favor de fazer. Erros podem ser cometidos? Que sejam enfrentados, que se tente resolvê-los, desde que se faça. Quem é contra a realização da Copa do Mundo no Brasil, quem é contra a realização da Olimpíada no Rio de Janeiro, é contra fazer.

Poderia eu argumentar que a Copa e a Olimpíada gerarão empregos e melhorarão a infraestrutura do país; poderia argumentar que o dinheiro que será investido nos eventos não seria investido em Educação e Saúde, se os eventos não ocorressem; poderia argumentar que a corrupção pode ser controlada, se se quiser. Poderia argumentar tudo isso.

Mas o que mais me incomoda é que as pessoas simplesmente não querem fazer. É a inação, a apatia, a falta de ousadia. A pequenez.

O medo pode se transformar em excesso de prudência, e o excesso de prudência pode se transformar em paralisia. Pode-se passar a vida inteira assim, a não fazer. Uma vida pequena, uma alma pequena. Aí, é claro, nada vale a pena.

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