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sexta-feira, 30 de outubro de 2009
30 de outubro de 2009 | N° 16140
DAVID COIMBRA
A virtude educativa da desgraça
Existiu um dia uma doce alemã chamada Carlota Sofia. Ela vivia no século 19, e era casada com um escritor de poucas luzes de quem você nunca deve ter ouvido falar: Enrique Stieglitz.
Os contemporâneos de Carlota Sofia a descreviam como uma jovem não apenas bela, mas também culta. Apesar de tais ótimos predicados, depois de certo tempo de casamento, ela passava seus dias angustiada com a falta de talento do marido. Não sabia mais o que fazer para inspirá-lo a escrever uma grande obra.
Até que teve uma ideia: suicidar-se. A tragédia serviria de inspiração para Stieglitz compor um romance imortal.
E o fez. Carlota Sofia matou-se, legando à posteridade uma carta tocante, que explicava o seguinte:
“Eu tinha esgotado todos os meios que me sugeriam o meu espírito estimulado pelo amor e pelo dever. Foi então que pensei na virtude educativa da desgraça”.
Lindo isso: a virtude educativa da desgraça.
Agora pergunto: algum homem, algum dia, seria capaz de um sacrifício como o que fez Carlota Sofia pelo seu amor e por amor à arte?
Claro que não. Só as mulheres têm essa generosidade, essa capacidade de doação.
Há, entre nós, duas mulheres que doaram suas vidas à arte: Dona Eva Sopher e a professora Tânia Rösing.
O sacrifício de Dona Eva está erguido em pedra e concreto no peito da cidade, o sesquicentenário Theatro São Pedro e o flamante Multipalco. O de Tânia Rösing repete-se todos os anos, mês a mês, semana a semana, até se tornar sólido sob as lonas dos circos da Jornada Literária de Passo Fundo.
Participei da Jornada deste ano. Testemunhei a grandiosidade e a intensidade do evento. Admirei-me com a organização ao mesmo tempo suave e implacável de cada atividade, cada palestra, cada debate. Percebi que, por trás de tudo, move-se a mão germânica de Tânia Rösing, atenta o dia inteiro, a semana inteira, o ano inteiro.
Se Tânia Rösing tentasse realizar a Jornada em Porto Alegre, não conseguiria. De pronto saltariam opositores de todo lado, protestando, bradando que não daria certo, dizendo não. A Jornada vingou porque se fez à sorrelfa, quase escondida pela terra vermelha do Planalto Médio. Quando os sabotadores de costume se aperceberam, já estava pronta.
E, óbvio, só se fez porque quem decidiu fazê-la foi uma mulher. Só uma mulher suportaria ir em frente apesar da eterna oposição dos gaúchos a tudo que se pretenda realizar no Estado.
Só uma mulher se sacrifica a tal ponto, como um dia se sacrificou a bela Carlota Sofia. Embora, é claro, nem todo sacrifício resulte em sucesso.
O marido de Carlota Sofia sobreviveu 15 anos a ela, e durante todo esse tempo bem que tentou, mas não conseguiu produzir nada além do medíocre.
Tenho pena de Stieglitz, como ele deve ter sofrido com sua incompetência e com a perda de Carlota Sofia. Mas não deixo de admirá-lo: afinal, ele de fato era um homem capaz de inspirar amor em uma mulher.
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