quarta-feira, 28 de outubro de 2009



28 de outubro de 2009 | N° 16138
DAVID COIMBRA


As monstruosidades da cidade

Ernst Gombrich nasceu na Áustria há cem anos, poucos meses antes de dois mil porto-alegrenses assistirem ao primeiro jogo entre Grêmio e Inter no Estádio da Baixada. Ao completar 41 anos de idade, publicou A História da Arte, e depois disso poderia morrer.

Aí está uma obra-prima que justifica uma vida. Talvez seja o livro de arte mais famoso do mundo. Pelo menos é o meu preferido, eu que leio bastante sobre o assunto, o que não adianta nada – não entendo lhufas de arte. Limito-me a seguir os ensinamentos do Professor Gombrich, que escreveu o seguinte:

“Não existem razões erradas para se gostar de uma obra de arte. Existem razões erradas para não se gostar de uma obra de arte”.

Isso se tornou uma aflição para mim. Porque obriga-me a um torturante esforço para gostar de qualquer obra de arte. Afinal, se gostar, estou incontestavelmente certo. Se não, há grande chance de que isso ocorra pelo motivo errado.

O problema é que sou de fato tosco na coisa. Por exemplo: lá em casa havia três reproduções de quadros do Miró. A primeira vez que as vi, não gostei delas. Depois, tentei entendê-las, porque é aquilo: a gente só gosta do que conhece.

Dediquei-me com todo o empenho a esta tarefa. Sentava-me numa poltrona da sala e ficava olhando para os quadros. Olhando. Olhando. Sabia que na certa havia algo profundo além das figuras e das cores que divisava. Mas o quê? O quê???

Os quadros permaneceram durante anos pendurados naquela parede, sem que jamais os tivesse decifrado por completo. Terminei por me enternecer com a presença deles e até por apreciá-los, mas não pelo que representavam em termos de arte, porque isso, tanso, não entendi.

O drama é que algumas obras, mesmo que invista nelas toda a minha boa vontade, não consigo gostar delas. Donde toda a simpatia que me despertou o texto do Voltaire Schilling no domingo passado, afirmando que algumas das obras de arte que enfeitam Porto Alegre na verdade não a enfeitam; enfeiam-na.

Custo a admitir, mas não gosto da maioria das instalações das bienais de Porto Alegre, principalmente das que foram deixadas pelos desvãos da cidade, um bloco vermelho num parque, uma cuia do tamanho de um caminhão à margem de uma avenida. Que fazer? Triste deficiência, essa minha.

Pessoas que entendem de arte afirmam que, no futuro, é possível que essas obras sejam consideradas belíssimas. Usam como exemplo os impressionistas, criticados em sua época, amados hoje.

Um bom exemplo, mas ainda assim não aplaca as dores de minh’alma atormentada. Porque, embora adore os impressionistas, não adoro todos os impressionistas. Algumas de suas obras eu simplesmente... não gosto delas. Imagino que pelo motivo errado.

Quem entende de arte é assim. Aprecia a arte contemporânea, as abstrações, as instalações, mesmo as aparentemente tolas, que, no meu precário entender, são quase todas.

O futebol também tem os seus estetas da tática, sobretudo os técnicos. O Gre-Nal ofereceu ilustrações perfeitas a respeito. Autuori tinha uma razão teórica para tirar Douglas Costa do time: ele queria um jogador com outras características no ataque.

Pouco lhe importava que Douglas fosse o melhor em campo, importava-lhe o movimento mudo das peças. Já Mário Sérgio elogiou Taison por ter marcado o lateral do Grêmio. Será que não é pouco para um atacante? Será que essa tarefa não seria mais bem exercida por um zagueiro? Decerto que sim, mas para o treinador o que interessa é o jogador cumprir a função que lhe foi designada, como um estafeta do futebol.

Como se estivesse prenhe do conceito emitido pelo Professor Gombrich, um esteta da tática considera qualquer esquema de jogo belo, apenas porque o compreende. Ou o concebe, no caso de ele ser um treinador. Mas futebol não é arte. Nem esporte é: é jogo.

Que só se vence quando se emprega o talento do atacante, a iniciativa pessoal na solidão bem vigiada da intermediária, a inspiração na zona conflagrada da grande área, o drible na esquina do campo, a negaça diante do zagueiro, o improviso impossível de ser previsto pela tática, por um analista, por um técnico, por mais sábio que seja. Ou que pretenda ser.

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