quinta-feira, 22 de outubro de 2009



22 de outubro de 2009 | N° 16132
FABRÍCIO CARPINEJAR | (interino)


Até 2012

Eu estaciono no mesmo lugar. Na Rua Tobias da Silva, para almoçar no Suzanne Marie.

É quase automático. Tomo a vaga menos trabalhosa, de preferência perto de uma garagem, para não manobrar. E nem vem com essa de que homem tem que fazer baliza para mostrar sua habilidade. Baliza serve para treino de futebol e não há dia amistoso em minha vida. Acertei uma vez na autoescola e não pretendo arranhar meu feito.

Sou ritualístico. Um pouco de improviso e me perco. Ao acender os faróis sem querer, não sei mais se fechei a casa direito, desliguei a cafeteira, recolhi as roupas, apaguei o gás. Um esquecimento acorda todos os possíveis extravios. Reabro casos arquivados da minha motricidade.

Eu penso no que fiz e me dá medo de ter esquecido alguma coisa. Porque fazer é esquecer. Algo fora do programa e confio que errei todos os passos anteriores. Neurose? Sim, uma neurose habilidosa, graduada.

Entre os atos habituais, deixo um troco para o guardador da rua na saída. Quando estou otimista (o que significa que não acendi os faróis), ofereço R$ 2. No azedume, busco uma moeda de R$ 1 e não puxo conversa.

O flanelinha me trata sempre da mesma forma, com bom-dia e bom trabalho.

Retribuo o bom-dia.

Dependendo da paciência, comento sobre futebol, apesar de não descobrir para qual time ele torce, o que prejudica a passionalidade dos comentários.

Mas naquela manhã retirei uma nota de R$ 2 da carteira, no impulso. Entreguei já com o pé na embreagem.

Ele insistiu para que abrisse o vidro.

“Será que está pedindo correção salarial?”, pensei. “Só o que falta é reclamar”, atropelei o primeiro pensamento.

Deu dois toques na janela e falou:

– Obrigado, meu irmão, Deus te abençoe e ilumine seu caminho, Deus possa retribuir a ajuda, minha família agradece, tenho dois filhos para criar, precisava mesmo comprar remédio e...

Não parava sua lamúria contente. Não sei o que é pior: o agradecimento ou a reclamação. Óbvio que é o elogio. Da segunda, a gente tem como se defender.

De cabelos cacheados e perflex na mão, o rapaz entrou em surto. Tive que acenar em movimento antes do fim de seu discurso.

Suspirei, aliviado, ele realmente compreendia o significado do dinheiro, o quanto custava cada centavo. Voltei a acreditar na evolução da espécie.

Segui meu dia, fui a uma festa de aniversário de noite. Durante a despedida dos amigos, no caixa, não encontrava a nota de R$ 100, somente a maldita de R$ 2. Escuro, embaçado pelo cigarro e bebida, cheguei a grudar a cédula em meus olhos como lente de contato para verificar se o azul de uma era o azul da outra. Não era e reprisei novamente o filme das últimas 12 horas e descobri que alcancei a grana para o guardador de carro, o que explicava sua euforia mística.

Eu estaciono no mesmo lugar e não pago mais o flanelinha. Ele tentou se aproximar nesta semana. Arriscou uma súplica, tímida, abafada.

– Hoje não tem nada?

Respondi que não, nem hoje nem amanhã, a rua era minha até 2012.

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