sábado, 24 de outubro de 2009



25 de outubro de 2009 | N° 16135
DAVID COIMBRA


Qual é a sua melhor foto?

Que foto você publicaria no seu obituário? Importante decidir o quanto antes. Aquela foto que resume quem você de fato é, colhida no tempo em que você foi mais você. Brigitte Bardot, por exemplo, decerto não pode ser considerada a senhora rugosa que hoje brada pelos direitos dos poodles. Não.

Ela é a deusa loira e seminua dos anos 60, sempre será. O que não significa que o melhor de nós seja sempre o mais robusto de nós. Ninguém pensa em Sigmund Freud como o jovem imberbe de cabelos negros que andava empertigado na Viena do século 19.

Nada disso. Freud é o senhor septuagenário, de veneranda barba branca, óculos sobre o nariz e charuto pendente da boca, que encara o fotógrafo com ar levemente ameaçador na primeira metade do século 20.

Uma cidade também tem o seu momento em que ela é mais ela do que em qualquer outro período de sua história. Se bem que uma cidade tem mais tempo para se transformar. Às vezes até em outra cidade. No ano 300, o imperador Constantino reconstruiu Bizâncio ao seu gosto, inclusive no nome: Constantinopla.

Que, mil anos depois, virou Istambul, a cidade de dois continentes. O Barão Haussmann fez uma operação plástica na Paris do começo do século 19, assim como Pereira Passos fez no Rio no começo do 20, mas uma e outra são, mais do que tudo, cidades dos anos 60.

Porto Alegre é dos anos 40 e, se houver uma foto ideal para retratar a cidade em seu tempo de maior esplendor, será uma foto da Rua da Praia daquela década. Na Porto Alegre dos anos 40, as pessoas faziam o footing na Rua da Praia. Elas falavam assim:

– Vamos fazer o footing?

Todo mundo sabia o que era. Os homens se enfarpelavam, punham-se debaixo de seus chapéus e, ao chegar à Rua da Praia, colavam as costas nas paredes dos prédios, como num corredor polonês. Pelo centro do corredor deslizavam as alvas mocinhas da época, elas também sob chapéus, muitas vezes enluvadas, sempre de braços umas com as outras, disfarçando olhares, emitindo risinhos secos, negaceando.

No meio do caminho, moças e rapazes podiam deparar com o escritor Erico Verissimo, quiçá levando pela mão o seu filhinho Luis Fernando, que em 1940 tinha quatro anos de idade. Quem sabe divisassem o poeta Mario Quintana saindo do vetusto prédio da Livraria do Globo, preocupado com os dilemas da tradução de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.

Não seria impossível de ver Dyonélio Machado observando o lugar para ambientar as desventuras do seu personagem Naziazeno no romance Os Ratos. E nem parecia tão complicada a tarefa do escritor.

A Rua da Praia dos anos 40 era sarapintada de bons cafés, livrarias bem fornidas e histórias coloridas. Na Rua da Praia circulavam os malandros e gozadores, como Odonne Greco, e os homens que decidiam o futuro do país, como Oswaldo Aranha. Na Rua da Praia batia o coração do Estado.

As sedes de Grêmio e Inter se localizavam na Rua da Praia, em prédios contíguos, onde hoje se ergue o mais alto edifício do Rio Grande do Sul, o Santa Cruz. As sacadas dos dois clubes quase se beijavam, eram tão próximas que alguém poderia passar de uma para outra apenas esticando a perna e levantando-a por sobre os parapeitos.

Depois dos Gre-Nais, a torcida do time vencedor ia para a calçada em frente aos dois prédios com faixas e cartazes. Muito conveniente: festejava-se a vitória e gozava-se do perdedor ao mesmo tempo.

Uma vez, depois de um Gre-Nal em que o Grêmio venceu, os gremistas levaram uma eletrola para a sacada e puseram para rodar um disco com músicas zombando dos colorados. Repetiram o disco durante um dia inteiro, enlouquecendo os rivais.

Outro dia, na véspera de um clássico, os dois chefes de torcida trabalhavam em suas respectivas sedes, Salim Nigri na do Grêmio, Vicente Rau na do Inter. Picavam papel, pintavam faixas, bolavam provocações. O trabalho ia adiantado dos dois lados, até que o martelo de Rau quebrou. Ele não vacilou. Foi até o outro prédio e pediu um martelo emprestado a Salim. Que acedeu, com uma condição:

– Eu vou até lá e prego o que tiver de ser pregado, porque, se eu emprestar o martelo, vocês são capazes de fazer macumba, e o Grêmio perde o clássico.

A rivalidade Gre-Nal nos anos 40 era assim: intensa, mas leve, como a Porto Alegre da época. Nos anos que se seguiram, a situação foi se transformando. Grêmio e Inter mudaram de endereço; a Rua da Praia, lentamente, deixou de ser uma rua sofisticada e foi tomada pelos camelôs, pela sujeira e pela violência. Ao mesmo tempo, a cidade tornou-se mais americana do que europeia, mais sisuda do que brejeira.

Hoje, Porto Alegre e o Gre-Nal são inegavelmente menos divertidos. Agora, uma aragem grave e alga ameaçadora ronda a cidade e o seu clássico. Mas as cidades podem mudar, as histórias de rivalidades esportivas podem mudar, e talvez até mudem. Espera-se que para melhor.

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