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quinta-feira, 8 de outubro de 2009
08 de outubro de 2009 | N° 16118
L. F. VERISSIMO
O horror dos detalhes
Na peça Henrique V, de Shakespeare, há uma cena que diverge do tom de celebração do resto. Boa parte da peça é sobre a famosa batalha de Agincourt, em que um exército inglês liderado por Henrique V derrota um exército francês cinco vezes maior, no dia de São Crispim, e Shakespeare dá ao rei várias falas exaltando o feito dos poucos afortunados como ele – “we few, we happy few” –, cuja coragem e caráter asseguraram a vitória. A peça é um elogio às virtudes peculiares da nobreza inglesa incorporada em Henrique – o que torna mais curiosa a cena destoante.
Tão destoante, que foi sendo cortada ou atenuada através dos anos e não aparece nas duas versões para o cinema, feitas por Laurence Olivier em 1944 e Kenneth Branagh em 1989. É uma cena de atrocidade. O rei ordena o massacre de prisioneiros franceses, que são degolados.
A chacina não apenas desmente todas as belas palavras de Henrique sobre o caráter do seu bando de irmãos, como contraria o código de honra que norteava o comportamento de cavaleiros cristãos nas guerras medievais (mas só contra outros cristãos, como prova o que aprontaram contra os árabes nas Cruzadas).
Talvez Shakespeare, colocando um massacre nada honrado no meio da sua peça mais ufanista, estivesse sendo matreiramente irônico com seus conterrâneos. Ou apenas quisesse lembrar que na celebração de grandes vitórias militares, a exaltação esquece o sangue e as belas palavras costumam esconder o horror dos detalhes.
A fala de Henrique ordenando o massacre é um lacônico “Que cada soldado mate seus prisioneiros. Passe a palavra adiante”. Sem preâmbulo, sem explicação, sem qualquer elaboração. A terrível singeleza da frase até justifica o fato de a cena ter sido frequentemente omitida, já que parece tão inconsequente – a não ser para os degolados, claro.
O próprio Henrique não menciona mais o incidente, banido, até Shakespeare resgatá-lo cem anos depois, da sua biografia.
Que não seria muito longa. Ele se casaria com a filha do rei francês e seria nomeado herdeiro do trono da França, mas morreria pouco depois, aos 35 anos de idade. O que conquistara com tanto sangue foi recuperado pela França, sob a liderança de Joana D’Arc.
Que vingou a derrota humilhante em Agincourt e cuja vitória é celebrada até hoje como a manifestação de um certo espírito peculiarmente francês, esquecidos todos os detalhes sangrentos.
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